quinta-feira, 25 de novembro de 2010

"A deificação humana na Fenomenologia do Espírito de Hegel e suas consequências na ciência contemporânea" Prof. Ms. Vitor Hugo Fieni

A deificação humana na Fenomenologia do Espírito de Hegel
e suas consequências na ciência contemporânea.

Prof. Ms. Vitor Hugo Fieni

Resumo: Este artigo pretende mostrar como que a filosofia de Hegel foi o momento onde o pensamento humano foi capaz de sugerir de forma conceitual que a razão humana é a causa de tudo que é real e, por isso, tem a possibilidade de conhecer filosófica e cientificamente todas as coisas e tomá-las como produto da própria razão, do Si. Este movimento, onde a consciência-de-si sabe-se como o todo, permite que pensemos em uma possível deificação humana, que nada mais é do que um acabamento último de todo o empreendimento filosófico transcorrido ao longo da história do pensamento ocidental. Veremos aqui que os acontecimentos atuais correspondentes a este pensamento hegeliano são as realizações feitas nos dias atuais pela ciência contemporânea que, através das experiências com nanotecnologia e da construção e funcionamento do Grande Colisor de Hádrons, fazem com que o homem seja o senhor da realidade não apenas no mundo do pensamento, mas também no campo da vida efetiva do mundo empírico.

Para que este tema se torne acessível, farei aqui uma explanação do que seria isto que chamo aqui de deificação humana na Fenomenologia do Espírito de Hegel. O que devemos saber, primeiramente, é que nesta obra de 1807 o filósofo, na sua atividade de observador da realidade, nota que a sua época é uma época que é um resultado de um processo histórico milenar de antropomorfização dos deuses, assim como de toda essência e substância do mundo fenomênico humano. O homem moderno do início do século XIX já identifica toda a substância religiosa, artística, cultural, política e filosófica como uma obra sua, ele vê que toda essência que o circunda não é outra senão a sua própria.
Ao notar este antropocentrismo e escrever sobre tal entendimento que ele enquanto pensador alcança, Hegel acaba por dar vida a esta ideia de que o homem é divino, ou melhor, que carrega em si mesmo toda a substância e verdade do mundo em que vive. É em pensando este processo de deificação humana ocorrido através dos séculos que Hegel também deifica o homem. Se tal deificação não fosse pensada ou notada ela não seria, simplesmente, pois o que faz, para o próprio Hegel, algo ser real é ser objeto do pensamento do homem.
A antropomorfização da substância constatada pelo filósofo foi tamanha que ele chegou a notar que o conteúdo, a essência de toda a realidade, passou a ser considerada pelos pensadores modernos que o precederam, como propriedade da razão humana, mas isso ainda se dava de modo inconsciente. Kant, por exemplo, já na Crítica da razão pura, observou que todo o conhecimento que o homem possuía advinha das categorias existentes na razão humana que, por sua vez, permitiam que se pudesse conhecer o que fosse possível a esta mesma razão, dada as suas limitações, como, por exemplo, a da impossibilidade de se conhecer a coisa em si.  Por conta disso Hegel nota que já em Kant a razão já se sabia como a fundadora de todo o real, mas inconsciente de ser ela mesma a fundadora da base de todo o conhecimento acaba por ter receio de conhecer a Deus, pois ainda O via como um ser que a ultrapassava. Ao ver na sua época uma forte influência da filosofia de Kant, que se auto-impotencializou para conhecer o absoluto, é que Hegel diz que sua época vive diante de uma “sensação de que Deus ele mesmo está morto”[1]. Se Deus não é racionalizável a sua efetividade está comprometida e sua realidade igualmente. O mundo e toda manifestação fenomenológica existente deve ser racional, pois caso contrário ela não poderia ser. A partir destas ideias de Hegel se pode recordar a máxima parmenidiana que exclama que “o mesmo é ser e pensar”. A capacidade de conceituação da realidade, mesmo que precária, é a condição de toda existência, e isso se dá através do lógos. A linguagem faz do real o efetivo e do efetivo o real. Se é dito que Deus não pode ser conhecido, pensado, se não se puder falar e pensar sobre Ele e sobre isso que é a Sua essência, Deus não é. E é isso que Hegel constata de sua época e o vê essencialmente na filosofia de Kant, Jacobi e Fichte.
Mas o que Hegel chama de morte de Deus não é apenas um resultado da antropomorfização da essência feita pelas religiões[2], mas é o resultado disso que pode e deve ser entendido como a morte, ou impossibilidade de se conhecer a coisa em si. A substancialização da razão humana, mesmo que feita de modo inconsciente, esvaziou o interesse pelo conhecimento da essência de Deus. Esta, por ser tida como impossível de ser perscrutada, deu lugar à consciência-de-si humana como lugar para ser pesquisado. Desacreditou-se, então, a possibilidade de se conhecer o ser de Deus e o resultado disso é a morte da metafísica. Mas se, por um lado, morre a possibilidade de se conhecer a Deus, por outro, nasce a possibilidade de se conhecer o homem e santificá-lo através da ciência. Ou seja, para Hegel esta tese kantiana – da impossibilidade de se conhecer a coisa em si – diz à razão que Deus não pode ser conhecido e, em não podendo ser pensado racionalmente, Deus também não pode existir, pois o que pode ser pensado é aquilo que possui racionalidade e apenas o que é real é que pode ser chamado de racional. Porém, a capacidade de se conhecer isso que é o homem nunca foi questionada com afinco na modernidade. Contrariamente, o homem sempre foi visto como aquele que garante a existência do real, o que ficou muito explicito com a máxima cartesiana do ego cogito.
Os pensadores pré-hegelianos, embora declarassem a inviabilidade de se conhecer isso que é substância do próprio pensar, foram capazes de dar à consciência humana a certeza de ser ela mesma o desde onde toda a realidade ganha existência. Mas embora fizessem isso, embora já houvessem permitido que a razão identificasse toda a realidade como sendo causa sua, isso não era suficiente para que este tipo de pensamento se aplicasse a Deus. Tais pensadores, para o próprio Hegel, não tiveram a fé suficiente na razão, a confiança de que ela poderia os levar até a máxima manifestação disso que é o real, a saber, a manifestação divina.
Hegel dá, então, este passo na Fenomenologia do Espírito fazendo com que o infinito se realize no finito e que o finito se realize no infinito. Este é um modo de ressuscitar aquele Deus que antes estava morto, porém a sua existência vai se dar agora desde a razão pensante do homem. Assim, Hegel junta as antíteses eliminando as suas contradições na medida em que permite fazer notar que o fundamento e causa dos contrários se encontram nos próprios contrários. O fundamento da essência se dará na consciência-de-si humana e vice-versa. Esta interdependência dos contrários, de inspiração claramente heraclitiana, permitiu que a essência e a consciência-de-si se encontrassem de um modo progressivo, fato este realizado pela dialética das religiões efetuada no capítulo VII da Fenomenologia do Espírito. Religião natural, religião da arte e religião manifesta (cristã); estas são as etapas onde Hegel identifica uma progressiva antropomorfização da essência e a sua adequação à consciência-de-si humana. Explicar aqui estas três formas de religião faria com que nós nos detêssemos demais nestas figuras, dada a sua pluralidade e profundidade. O que devemos tomar aqui como consciente é apenas o fato de que na religião natural (persa, indiana e egípcia) o que se tem é uma essência que não reflete a imagem da consciência-de-si, ou seja, a figura humana. Na religião da arte (grega), ao contrário, o que se percebe é uma substância que é uma obra humana que reflete a sua imagem perfeita. Já na religião manifesta (cristã) o que se tem é uma essência divina imutável que se faz consciência-de-si humana mutável e passível de morte. Cristo é para Hegel a figura do espírito que une perfeitamente as polaridades antes afastadas. É uma figura na qual o homem se sabe deus e deus se sabe homem. Diz Jesus, “quem me vê vê o Pai”. Com isso torna-se indistinguível na sua pessoa o que é aquele Em-si primeiro substancial, eterno, imutável e o que é o homem em toda sua sensibilidade e perenidade.
Em Jesus a consciência-de-si identifica-se então com a substância, mas como esta identidade se dá pelo amor, ou seja, pelo sentimento, ela deve ser, assim, substituída por uma identidade superior, racional, e não sentimental, porque no desdobramento do espírito e de seu auto-conhecimento, o que é racional está sempre acima, de modo hierárquico, daquilo que é sentimental, e que se liga com uma condição natural, não intelectual e, por isso, menos elevada. Segundo Hegel, a síntese realizada por Cristo entre finito e infinito, consciência-de-si e substância, deve encontrar assim sua superação na reconciliação feita pela filosofia hegeliana entre finito e infinito, consciência-de-si e substância. Se Cristo unia os apostos pelo amor, Hegel o fará pelo conceito. Não seria então mais a fé, mas o conceito, o saber científico, que faria com que a consciência tivesse como conteúdo o absoluto. Religião (cristã) e filosofia (hegeliana) são para o próprio filósofo momento nos quais o espírito se sabe como espírito, a diferença será apenas no modo como isso ocorre. Ou sentimento ou conceito.
A identificação feita pelo filósofo do Si humano como sendo toda a realidade é uma consequência que se dá da seguinte forma que será chamada por nós aqui como sendo o antropo-panteísmo hegeliano.
O termo antropo-panteísmo não carece aqui de grandes explicações, pois o que com ele se quer dizer se entende logo quando se lê tal expressão. Ou seja; não se fala aqui de um panteísmo da substância, o que nos levaria fatalmente à filosofia de Espinosa e de tal modo Hegel não teria para si mérito algum em termos de “novidade” intelectual. O panteísmo ao qual nos referimos é o panteísmo da consciência que em tudo vê a si mesma. O que ela encontra no objeto e nas leis da natureza é um reflexo dela mesma (Consciência; cap. I – III da Fenomenologia); quando ela se defronta com uma outra autoconsciência o que ela conquista é o seu saber-de-si autoconsciente (Consciência-de-si; cap. IV); no mundo da eticidade, no mundo da cultura, a consciência (coletiva, de um povo) não se dá com outra coisa senão consigo mesma (Espírito; cap. VI) e enfim, quando fala de Deus e para este se dirige, o que a consciência faz é tomar para si um conhecimento disso mesmo que ela é, a saber, espírito (Religião, cap. VII). Como Razão (cap. V) a consciência-de-si “está certa de que toda a efetividade não é outra coisa que ela”[3]. Hegel escreve ainda que “a razão é a certeza da consciência de ser toda a realidade”[4]. Aquilo que era tomado como um “ser-outro, como em si, desvanece para a consciência”[5]. Na razão a consciência tem a certeza de que ela “é toda a realidade”[6]. Isso, porém, não significa que não haja um outro que difira de mim, mas o que diante disso deve ficar claro é que a diferença existente é “uma diferença que ao mesmo tempo não é diferença nenhuma”[7]. Por fim, no Saber Absoluto (cap. VIII), a consciência – que faz um caminho de rememoração dos espíritos[8] – toma para si o seu mundo, seu presente, “descobre-os como propriedade sua”[9]. Mais uma vez, o filósofo nos deixa bem claro o que pensa ao dizer que “a coisa é Eu[10][11]. O espírito é “a transformação desse Em-si no Para-si; da substância no sujeito[12]. Na ciência do saber absoluto não existe também uma diferença entre o saber e a verdade. O que se toma como verdadeiro e substancial não é algo que se distingue da consciência-de-si em-si e para-si. É esta que sabe que a diferença existente é diferença nenhuma. Há, de fato, o outro substancial, mas este não é Outro no sentido positivo do termo. Assim é que a consciência-de-si se identifica com o todo e ela se faz absoluta justamente por conta desta identidade. Em tudo a consciência-de-si que sabe se vê a si mesma, seja na natureza imanente seja na substância transcendente. É nisso que consiste o antropo-panteísmo[13] hegeliano.
Para Hegel a humanidade é causa da sua política, causa da sua cultura, da sua arte, da sua religião e filosofia, sendo esta última a instância na qual tudo se revela à humanidade como criatura sua desde si e para si mesma. Hegel assim coroa o sistema cartesiano e seu modo de garantir a existência indubitável da realidade a partir do ego. A diferença é que para Hegel aquele ego cogito seria expresso de forma mais clara como cogitamus, pois o ego que se sabe a si mesmo na filosofia de Hegel é coletivo e ultrapassa a mera subjetividade individual, na qual o espírito submergiria se somente a ele estivesse destinado. Espírito é justamente o movimento que inclui a subjetividade individual na esfera do todo e Hegel deixa isso bastante claro ao dizer que o espírito é um Eu que é um Nós e um Nós que é um Eu. Nós é toda a realidade fenomenologicamente experienciável da consciência da humanidade. O espírito é esta realidade e, também, por outro lado, a própria consciência dessa realidade. Mas não esqueçamos que o espírito é a transformação “da substância no sujeito”. É ele, o sujeito (coletivo e individual) que pensa, que raciocina de forma consciente de ser toda a realidade, ele é que identifica toda a substância como sendo o Si individual.
É por conta destas asserções que consideramos haver em Hegel uma deificação humana dada a antropomorfização máxima da substância que ele promove. Mas alguns poderiam nos dizer: “Hegel não promove a antropomorfização da substância, ele apenas a constata”, a estes nós diríamos que isto que Hegel constata é em sendo constatado que passa a existir e ser real. Ou seja, quando Hegel lê a realidade para nós e a ela ele nos apresenta, ela, a realidade, é mostrada desde o modo hegeliano de ver a realidade. A antropomorfização de deus nas religiões não é um ponto de vista aceito universalmente (pelo menos do ponto de vista da fé cristã ocidental essa antropomorfização é um disparate), mas é o ponto de vista de Hegel. Em mostrando o seu ponto de vista da realidade Hegel promove sim uma antropomorfização. A sua própria filosofia diz que algo só é a partir de quando é pensado, bem, a antropomorfização dos deuses é pensada de forma dialética por Hegel, então é por meio do seu pensamento que a antropomorfização da substância se faz real.
Dado isso, devemos passar agora às considerações de quais seriam as consequências causada por essa deificação humana na ciência contemporânea e tentemos entender estes paralelos.
O fato de a filosofia hegeliana dar ao homem a fé de poder se unir à essência, à substância, através da ciência, é o principal ponto para o qual devemos atentar. Acreditar na razão humana a ponto de apostar todas as fichas de que ela é capaz de entender tudo, até mesmo a essência de Deus. Embora estas teses tenham rendido a Hegel uma conta notável de adversários, é preciso que se admita que esse pensamento não morreu com o filósofo em 1831. De modo contrário, vemos em nosso tempo atual um ressurgimento dessas pretensões desmedidas e o seu reflexo se mostra claro nas mais inovadoras pesquisas sobre nanotecnologia assim como nas pesquisas com o Grande Colisor de Hádrons. A princípio esse tipo de afirmação poderia nos parecer um tanto quanto disparatadas, mas se nos permitirmos realizar uma investigação com boa disposição de espírito a esse respeito veremos que as ligações podem ser feitas sem grandes dificuldades.
É claro que o tempo que separa a Fenomenologia do Espírito da construção do LHC deve ser levado em consideração. Mas esse intervalo não deve nos impedir de dizer que ambas as épocas se tentou algo parecido: a deificação humana. Mas a tentativa de tornar o homem um Deus não deve ser entendida de forma religiosa, mas deve sim ser compreendida como uma substituição do Deus transcendente pelo deus imanente, pelo homem enquanto senhor de si e senhor da natureza.
Esse tentativa de deificar a humanidade é antiga. A Babilônia e o Egito são exemplos clássicos de como no mundo antigo essa pretensão já existia. Porém, eles ainda estavam inaptos tanto filosoficamente quanto cientificamente para empreender este feito. O giro antropocêntrico causado na modernidade e o desenvolvimento tecnológico crescente permitiram que este intuito de elevar a razão humana a níveis jamais antes alcançados foram as bases que permitiram alavancar este empreendimento. O começo do século 19, passado as Grandes Navegações, a Reforma protestante, o Renascimento, o Iluminismo a Revolução Francesa e o Romantismo, permitiu que Hegel, em 1807, escrevesse a trajetória da experiência da consciência rumo àquilo que ele chamou de saber absoluto. Este era o momento diante do qual a humanidade poderia olhar para trás, para todas as eras e séculos passados, avaliar a sua caminhada, o seu progresso e julgar, sem medo de errar, que ela mesma (a humanidade) era a construtora de tudo o que é real e experienciável no mundo. Para Hegel o homem filósofo era já no seu tempo capaz de olhar toda a realidade e ver nela um reflexo de si mesmo. Cultura, arte, religião e filosofia deveriam ser entendidas como alienações do Si humano. Deste modo este Si poderia se auto-proclamar, pela primeira vez com razão de fazê-lo, poderia se auto-proclamar o Senhor da realidade.
Nos dias atuais, diante das incríveis descobertas da física atômica, da física quântica, de toda a ciência nuclear e com a surpreendente completude do mapeamento genético humano, diante dessas descobertas e estudos jamais antes realizados, nos vemos diante de um mundo que parece querer tomar um novo rumo, pois algo surpreendente parece que nos aguarda. Há uma passagem no § 11 da Fenomenologia do Espírito que poderia ser reproduzido hoje por nós e ser, assim, reatualizado. Lemos assim: “não é difícil ver que nosso tempo é um tempo de nascimento e de trânsito para uma nova época. O espírito rompeu com o mundo de seu ser-aí e de seu representar, que até hoje durou; está a ponto de submergi-lo no passado, e se entrega a tarefa de sua transformação”[14]. Tomemos um exemplo sobre a nanotecnologia e vejamos como, de fato, o nosso tempo está a ponto de ser totalmente revirado por estas novas descobertas: a experiência de criar nano-células, ou seja, células robóticas capazes de caçar e destruir células malignas, assim como capazes de reproduzir novas células no lugar das que morrem, já é um experimento real e que não é mais segredo nenhum. O que ainda parece ser segredo é se esses experimentos estão sendo utilizados em humanos ou não. Mas o fato é que já se vê cientistas com quase 60 anos dizendo abertamente que crêem que antes mesmo de que eles morram já se terá alcançado o milagre da vida eterna[15]. Isso aconteceria através das nano-células que serão capazes de dar conta de reproduzir e produzir o rejuvenescimento biológico. Poderíamos contar entre essa, muitas outras peripécias, como a capacidade de gerar no ventre materno uma criança projetada com o gosto estético dos pais, assim como elevar a sua capacidade intelectual a níveis bem acima do comum ainda no ventre da mãe. Estas são conquistas já realizadas pela humanidade atual que os maiores ocultistas e alquimistas da idade média jamais poderiam imaginar. Somente hoje a ciência permite que o homem toque naquilo que antes era intocável, misterioso e sagrado. A ciência parece ter rompido com as inúmeras barreiras de uma escuridão que durou vários e vários séculos. Como se diz habitualmente, agora é possível que o homem brinque de ser Deus, mas essa brincadeira parece já ter ficado séria o bastante para perder qualquer caráter lúdico. A construção do maior acelerador de partícula de todos os tempos que o diga! O LHC (Grande Colisor de Hádrons) é a maior e mais cara invenção humana de todos os tempos. Ele fica em um laboratório que consiste em um túnel de 27 km de circunferência e que fica a 175 metros abaixo do solo na fronteira entre a França e a Suíça. A sua missão é colidir partículas de prótons à uma velocidade próxima a da luz, ou seja, 300 mil km/seg. Com isso se espera que esta máquina (que custou o equivalente a 8 bilhões de dólares) se possa recriar os instantes posteriores ao Big Bang e obter, assim, informações chaves sobre a formação do universo e a confirmação, ou não, da teoria física baseada no Bóson de Higgs[16]. Em outras palavras, explicar o que seria aquilo que constitui a essência de todas as partículas da natureza, é isso que também se pretende com o LHC, alcançar o que foi intitulado pelos cientistas do CERN como a “partícula de Deus”.
Cabe a nós nos perguntarmos em caráter de urgência: estaria toda a pontencialidade destas invenções sendo divulgadas realmente? Em que níveis de avanço essas pesquisas realmente andam? Até que ponto poderíamos esperar que estas descobertas serão usadas depois ou antes de um confronto militar ou ideológico na qual elas seriam aproveitadas? O fato é que a comunidade acadêmica, especialmente a área de humanas, curiosamente parece fazer vistas grossas a esses acontecimentos. Mas a quem esses conhecimentos vão servir?
Falar novamente da morte de Deus, nessas alturas do campeonato, parece não ser algo que choque mais a muitas pessoas. Como dizia Hegel, bem antes de Nietzsche, Deus parecia já ter morrido ao final do século XVIII. E foi diante deste tempo de morte do sagrado que ele escreveu a Fenomenologia do Espírito e a concluiu com o seu ousado capítulo sobre o saber absoluto, que foi a porta de entrada de todo humanismo e ateísmo do século XIX. Mais uma vez, nos vemos diante de uma revolução que afasta o homem completamente dos seus suspiros religiosos, pois grande parte daquilo que era considerado como obra de Deus parece agora que agora encontra um novo artífice pelas mãos humanas. O que a filosofia cumpriu a 200 anos atrás pela pena de Hegel a ciência parece cumprir somente agora através das incríveis descobertas e experiências feitas pelos cientistas contemporâneos.
Bibliografia

HEGEL. Fé e Saber. Trad: Oliver Tolle. São Paulo: Hedra, 2007.

______. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Menezes. 3. ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes e Editora Universitária São Francisco, 2005.

KOJÈVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto: EDUERJ, 2002.


[1] HEGEL. Fé e Saber. Trad: Oliver Tolle. São Paulo: Hedra, 2007. p. 173.
[2] Expostas por Hegel no capítulo VII da Fenomenologia do Espírito.
[3] HEGEL. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Menezes. 3. ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes e Editora Universitária São Francisco, 2005. p. 173.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem.
[6] Ibidem. p. 174.
[7] Ibidem. p. 175.
[8] Cf. Ibidem. p. 545.
[9] Ibidem. p. 540.
[10] Das Ding ist Ich.
[11] HEGEL. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Menezes. 3. ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes e Editora Universitária São Francisco, 2005. p. 532.
[12] Ibidem. p. 539.
[13] Cremos que este termo é mais apropriado ao pensamento de Hegel do que a idéia de antropoteísmo correntemente usada por Kojève (In: KOJÈVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto: EDUERJ, 2002). Como tentamos mostrar, não é apenas em Deus que o homem do saber absoluto se encontra a si mesmo. A prova disso é a leitura antropológica que Hegel faz da natureza, na medida em que desenrola o conceito da sua estrutura a partir de moldes baseados seja no homem seja na sociedade humana.
[14] HEGEL. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Menezes. 3. ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes e Editora Universitária São Francisco, 2005. p. 31.
[15] É o que nos diz o cientista Raymond Kurzweil em http://globonews.globo.com/Jornalismo/GN/0,,MUL1434904-17665-314,00.html
[16] Bóson de Higgs é uma partícula elementar escalar maciça hipotética predita para validar o modelo padrão atual de partícula. É a única partícula do modelo padrão que ainda não foi observada, mas representa a chave para explicar a origem da massa das outras partículas elementares.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

"WITTGENSTEIN E A QUESTÃO DA INTERIORIDADE" Filicio Mulinari e Silva


WITTGENSTEIN E A QUESTÃO DA INTERIORIDADE[1]

Filicio Mulinari e Silva[2]


Resumo:
Esta comunicação tem como objetivo apresentar uma investigação sobre a noção de interioridade proveniente da filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein. O trabalho tem o intuito de mostrar, a partir da relação entre mente e linguagem, uma alternativa à problemática metafísica da relação entre interior e exterior para além das tradicionais teses dualistas e monistas que alegam uma suposta privacidade epistêmica sobre o interior. Tendo como referência as obras Investigações Filosóficas e Últimos Escritos sobre a Filosofia da Psicologia, busca-se uma compreensão da noção de interioridade não como uma entidade privada, mas como uma pseudo-entidade associada a formas lingüísticas, que se destaca principalmente na assimetria existente entre os discursos de 1ª e 3ª pessoas.
Palavras-Chave: Interioridade, Linguagem, Solipsismo, Wittgenstein.

O problema da interioridade
A questão em torno da relação entre interior e exterior, apesar de não ser recente na filosofia, ainda gera debates freqüentes e acirrados entre os filósofos contemporâneos. Desde os gregos já podia ser notado uma importância dada para algo que se acreditava interior ao ser humano. A máxima socrática do ‘conhece-te a ti mesmo’ e a visão dualista de Platão sobre a realidade são exemplos disso.
No período Medieval, “[...] a visão do homem como possuidor de duas substâncias distintas persiste, sobretudo, pela conversão do termo ‘interior’ à idéia cristã de alma”.[3]
No entanto, é com a advinda da modernidade que a noção de interioridade como problema começa a se acentuar. A partir da tese do filósofo francês René Descartes (1596-1650), que via a realidade como possuidora de duas substâncias distintas, a saber, res cogitans (alma) e res extensa (corpo), o interior começou a ser compreendido e interpretado segundo duas teorias divergentes, a saber, segundo teorias dualistas ou segundo teorias monistas.
Fundamentados na tese iniciada por Descartes, os dualistas afirmam que há duas realidades ou substâncias distintas e independentes: a material e a espiritual. A realidade material é física, pode ser definida como a realidade do mundo físico e é passível de observação pelos sentidos. Já a realidade espiritual é não-física e imaterial e pode ser classificada como realidade mental.
Em oposição aos dualistas, os materialistas argumentam que a única coisa da qual pode se afirmar a existência é a matéria e, por isso, defendem a unidade material da realidade e a identidade entre mente e corpo enquanto matéria.
Entretanto, seja para a tese dualista, seja para a tese materialista, o interior sempre foi visto como algo privado e acessível somente para o sujeito da experiência. Nesse sentido, o interior seria uma entidade sobre a qual o sujeito tem uma espécie de ‘autoridade de conhecimento’, uma vez que o sujeito possui um conhecimento direto e preciso sobre seu próprio interior (sensações, experiências, etc.).
Além dessa ‘autoridade’ de conhecimento, deve-se frisar também uma suposta ‘privacidade’ do conhecimento sobre o interior, pois somente o próprio sujeito tem acesso à sua cena mental e pode descrever com evidência e certeza os objetos que aí ocorrem. Nesse sentido, outras pessoas teriam apenas um ‘acesso indireto’ ao que supostamente se passa no interior de outra pessoa, sendo impossível realmente saber o que se passa nele. Logo, o conhecimento do interior seria um conhecimento ‘privado’.

A solução de Wittgenstein
            Ludwig Wittgenstein (1889-1951) fez uma importante crítica a essa suposta ‘privacidade’ do conhecimento, bem como uma crítica da ‘autoridade’ de conhecimento da 1ª pessoa sobre o interior. Nos seus escritos tardios,[4] Wittgenstein criticou a privacidade epistêmica do conhecimento sobre o interior e, em oposição a esta teoria, argumentou que a referida ‘privacidade’ é na verdade um problema de linguagem e não um problema epistemológico ou ontológico. Como salienta Marques (2003, p. 13), a tese que Wittgenstein levantou é a de que:
O interior é uma pseudo-entidade que se deve associar, não à imagem de uma caixa a que apenas o próprio sujeito tem acesso, mas sim a formas lingüísticas expressivas que introduzem assimetrias inultrapassáveis entre a perspectiva da 1ª pessoa e da 3ª” (MARQUES, 2003, p.13).
Assim, um novo olhar sobre a questão do interior aparece com as obras de Wittgenstein, principalmente devido à consideração de que o problema é uma questão de linguagem. É importante ressaltar que a originalidade da abordagem de Wittgenstein sobre o tema não se distingue das outras abordagens presentes na história da filosofia pela importância dada à linguagem, mas sim por elucidar que o interior atua pela linguagem. “[...] Para Wittgenstein a descoberta do interior é obtida pela reflexão sobre os usos da linguagem que exprime o interior”.[5] É a linguagem que une a relação entre interior e exterior e torna, com isso, o interior como algo real e não-privado.
Para Wittgenstein, a distinção entre natureza interior e exterior, ao invés de ontológica, seria gramatical. O objetivo do filósofo em seus últimos escritos era o de fazer uma consideração gramatical sobre os usos e os termos psicológicos tal como acontecem na sua expressão ordinária. Desse modo, podem-se afirmar dois pontos importantes para a compreensão daquilo que formará a noção de interior em Wittgenstein.
O primeiro ponto remete a uma possível assimetria entre 1ª e 3ª pessoa. Nesse sentido, Wittgenstein defendeu que as vivências de primeira pessoa podem ser compreendidas quando expressas a alguém que compartilha a mesma forma lingüística. O que Wittgenstein defende é que as sentenças como ‘eu estou com dor’ e ‘ele está com dor’ têm funções diferentes na linguagem ordinária: a primeira expressa, a segunda descreve. Dessa forma, verbos intencionais (pensar, desejar,...) não correspondem a fenômenos que podem ser apontados ou referenciados no interior da mente, pois a função dos verbos intencionais é expressar, não descrever ou designar.
O segundo ponto remete a variação da natureza da linguagem. É um ato ilusório crer que o interior seja um conjunto de coisas que podem ser designadas pela linguagem, principalmente na crença de que a linguagem é descritiva por essência. Conforme ressaltado por Wittgenstein, a linguagem possui diferentes funções que se enquadram e significam, por sua vez, diferentes contextos. Para uma melhor compreensão, tem-se o exemplo da ‘caixa de ferramentas’:
Pense nas ferramentas dentro de uma caixa de ferramentas: encontram-se aí um martelo, um alicate, uma serra, uma chave de fenda, um metro, uma lata de cola, pregos e parafusos. – Assim como são diferentes as funções desses objetos, são diferentes as funções das palavras. (...) O que nos confunde, sem dúvida, é a uniformidade de sua manifestação, quando as palavras não são ditas ou se nos apresentam na escrita e na impressão. Pois, seu emprego não é tão claro assim. Especialmente quando filosofamos! (WITTGENSTEIN, 1996, §20-21).
A exteriorização lingüística é, segundo Wittgenstein, a condição de verificabilidade do estado interior: se alguém diz que conhece seus próprios estados interiores/mentais e que outra pessoa não pode nunca saber, mas somente inferir por analogia, tal pessoa cometerá um erro de análise gramatical. Deve-se ressaltar aqui que, se a falta de condições fosse sempre colocada em questão quando se expressa tais estados, então seria muito improvável a continuidade de qualquer tipo de comunicação entre o ‘meu interior’ e aquilo que é vivenciado pelos outros.
Noutras palavras, se as vivências interiores do individuo adquirissem significado a partir do próprio indivíduo, os conceitos mentais (como tristeza, dor, etc.) seriam irredutivelmente subjetivos, ou seja, seriam essencialmente privados no sentido que somente o sujeito que experimenta a dor ou tristeza poderia saber se sua vivência corresponde ao comportamento externo.
Contudo, Wittgenstein rejeita essa perspectiva que afirma que as vivências interiores possuem significado a parti de si mesmas. Ao procurar desconstruir a compreensão descritiva de um interior, Wittgenstein afasta a imagem de que cada um consegue olhar para este interior como lugar privativo. A assimetria entre a primeira/terceira pessoa aparece nesta relação entre o uso lingüístico e o âmbito das experiências privadas numa visão panorâmica. Segundo Marques, no “âmbito de tal visão panorâmica das gramáticas dos verbos cognitivos é dizer que ele defende uma noção consensualista de verdade e é ela que determina as formas possíveis de correspondência entre linguagem e mundo” (MARQUES, 2003, p.136). Desse modo, Wittgenstein procura mostrar que é na concretude da gramática que acontece a compreensão daquilo que usualmente se chama de interior.
Em suma, os apontamentos de Wittgenstein procuram dar uma luz às confusões gramaticais que são associadas à expressividade das vivências interiores. A dicotomia existente entre interior/exterior é resolvida na dimensão expressiva da linguagem, principalmente naquilo que ficou conhecido como argumento da linguagem privada, que alega uma impossibilidade de etiquetagem interna das sensações a partir do próprio sujeito da experiência.
Dessa forma, Wittgenstein se opôs à maioria dos filósofos tradicionais da história da filosofia, uma vez que o interior agora não é uma entidade privada da qual apenas o próprio sujeito tem acesso, mas sim algo público que é expresso e atua na linguagem.[6]


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PERUZZO JÚNIOR, Léo. Considerações sobre o “interior” em Ludwig Wittgenstein. Dissertação (mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-PR. Curitiba, 2010.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Últimos Escritos sobre a Filosofia da Psicologia. Trad. António Marques, Nuno Venturinha, João Tiago Proença. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.


[1] Comunicação apresentada para o “III Simpósio de Pesquisa e Extensão em Filosofia da UFES”,  no ano de 2010.
[2] Aluno do curso de graduação em Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo.
[3] PERUZZO JÚNIOR, 2010, p. 21.
[4] Escritos tardios refere-se, aqui, as obras Investigações Filosóficas e Últimos Escritos sobre a Filosofia da Psicologia.
[5] MARQUES, 2003, p. 13.
[6] Deve-se ressaltar que Wittgenstein não se preocupa em sua teoria da natureza do interior, mas sim do modo de como a exteriorização do interior acontece por meio de uma linguagem pública e intersubjetiva.

"A culpa e o desejo: interface entre Freud e Descartes" Karina de Cássia Caetano


A culpa e o desejo: interface entre Freud e Descartes[1]
Karina de Cássia Caetano


Em As Paixões da Alma (1987), o pensador cartesiano, apresenta seis paixões primitivas - admiração, ódio, amor, tristeza, alegria e desejo - que originarão as paixões secundárias. O norte desta pesquisa consistirá na investigação específica da paixão desejo. Tal paixão se apresenta como:
(...) Uma agitação da alma provocada pelos espíritos que a tornam propensa a querer para o futuro as coisas que se lhe afiguram vantajosas, desse modo não se deseja somente a presença do bem ausente, mas também, a conservação do bem presente (...) e, além disso, a ausência do mal (DESCARTES, 1987, p. 156).

A manifestação do desejo coloca o homem em processo de duplo desenvolvimento. Quando a alma é acometida por esta paixão, torna o corpo mais bem disposto e, concomitantemente, isso torna os desejos da alma mais fortes e mais ardentes (DESCARTES, 1987, p. 170).

Destaca-se que a paixão desejo agita o coração com muito mais intensidade do que as outras paixões, e abastece o cérebro com mais espíritos, os quais, ao se dirigirem a partir daí para os músculos, fazem com que os sentidos se tornem mais aguçados e todas as partes do corpo adquiram mais mobilidade (DESCARTES, 1987, p. 164). Por se caracterizar como um sentimento que atinge o corpo tão fortemente pode-se compreender o desejo como uma manifestação imprescindível ao desenvolvimento das outras paixões e suas ações decorrentes.

De acordo com Descartes, o desejo possui uma característica peculiar se comparado às demais paixões. Enquanto essas geralmente se apresentam a partir de seus opostos - amor e ódio, tristeza e alegria, o desejo não se manifesta por antítese, mas como uma paixão que tende ao bem e se afasta do mal. Entretanto, existem algumas paixões que podem acompanhar o desejo e encaminhá-lo em direção ao que é bom ou, ainda, manifestar-se em sua forma negativa, como desejo enfraquecido. Ao tender para o bem, o desejo comumente surge em conjunto com o amor, a esperança e a alegria; ao afastar-se do bem e se enfraquecer, o desejo vacila e associa-se ao temor, desespero e langor. Neste sentido, o filósofo assinala que não há paixão contrária ao desejo; o que muda e diferencia suas manifestações são seus objetos e associações a outras paixões.

 Contudo, quando a possibilidade de realização do desejo é pequena manifesta-se o temor e o medo. O temor pode aparecer também como ciúme e advém das coisas que são difíceis de serem alcançadas. O temor pode transformar o desejo em desespero. (...) Porém, quando consideramos se há (...) pouca probabilidade de conseguir o que se deseja, (...) aquilo que se nos afigura existir pouco estimula o temor, de que o ciúme constitui uma espécie (DESCARTES, 1987: 144).

Uma associação do desejo a ser destaca é sua relação com o amor. Quando há possibilidade de adquirir algo que se encontra distante, a paixão amor se concentra na elaboração da idéia do objeto amado. O amor junto do desejo pode, ainda, inibir o desenvolvimento do sujeito. O desejo, que tem como característica essencial impulsionar o corpo pode ser sublimado pelo efeito do amor e originar o surgimento do langor.
“(...) O amor ocupa de tal forma a alma em considerar o objeto amado, que emprega todos os espíritos que se encontrar no cérebro em representar-lhe a imagem e detém todos os movimentos das glândulas que não sirvam para tal efeito. E cumpri notar, no tocante ao desejo, que a propriedade que lhe atribuí de tornar o corpo mais móvel só lhe convém quando se imagina que o objeto desejado é tal que se pode desde esse momento fazer algo que sirva para adquiri-lo; pois se, ao contrário, se imagina que é impossível naquele momento fazer algo de útil para isso, toda a agitação do desejo permanece no cérebro, sem passar de modo algum aos nervos, e sendo aí inteiramente empregada em fortalecer a idéia do objeto amado, deixa o resto do corpo languescente”. (DESCARTES, 1987 [1649], p. 271)

Para Descartes, o langor se exprime como uma tendência do sujeito de ficar sem realizar movimento. A causa do langor, embora possa derivar de outras paixões, como ódio, tristeza ou alegria, na maioria das vezes, advém da união do amor ao desejo, enfraquecendo-o e tornando o sujeito inerte.

Sempre que a paixão desejo vacila, a capacidade de desenvolver atividades é diminuída ou, até mesmo sublimada se, por exemplo, o enfraquecimento do desejo culminar em langor. Nesse momento, é comum a ocorrência do sentimento de culpa, especialmente quando a atenuação do desejo provém de sua relação com o medo, que segundo Freud é a principal paixão que faz incidir a culpa.

Embora Descartes não tenha abordado especificamente a questão da culpa, as sensações de desejo, de satisfação, de remorso e de arrependimento têm direta relação com esse sentimento. O desejo uma vez realizado gera momentaneamente satisfação. Essa também pode se manifestar por meio da realização de um bem. Porém, a busca pela realização do desejo pode gerar o remorso se houver dúvida quanto a sua satisfação. Assim, a alma faz questionamentos na tentativa de identificar a natureza do desejo e sua conseqüente satisfação. Devido a tal dúvida ou a falta de reconhecimento do desejo é comum o aparecimento do remorso. Quando a alma se convence que algum mal foi realizado surge o arrependimento. Se o remorso pode ou não resultar em culpa, o arrependimento, por sua vez, é o reconhecimento deste sentimento. Até as paixões mais nobres são passíveis de culpa, pois um ato benéfico em prol do próprio sujeito pode resultar em dano para outro. Por conseguinte, surge a culpa como uma espécie de tristeza resultante da satisfação de um desejo que se configurou como uma ação má.

Neste sentido, é possível perceber como as considerações acerca do desejo auxiliam na compreensão do sentimento de culpa. O desejo compreendido como uma vontade de adquirir um bem que ainda não se possui ou evitar um mal que julga possível de sobrevir se vincula ao futuro no sentido de orientar para sua satisfação, ainda que momentânea. Freud, ao desenvolver a questão do desejo, também o relaciona com a satisfação; neste sentido o desejo não é uma simples necessidade biológica. Assim, o desejo, além do aspecto físico abre caminho para manifestação das pulsões, já que auxilia na ligação entre psíquico e somático.

Se para Descartes são as paixões - percepções inevitáveis - que fazem a vinculação entre corpo e alma, para Freud, é a pulsão aquilo que faz fronteira entre o psíquico e o somático (FREUD, 1972: 171). A pulsão se manifesta como uma constante fonte de excitação do organismo, da qual não se pode fugir. Dito de outro modo, o corpo faz o psíquico trabalhar e esse suplemento se inscreve como pulsão. Essa proposição vem do fato de ser impossível fugir da pulsão (MURTA, 2009:13).

Nota-se que, assim como não é possível escapar da pulsão, também não é possível satisfazê-la e extingui-la totalmente. Sempre se manifestam novas pulsões visto que a satisfação obtida é sempre menor que a satisfação desejada. O excedente é fator de impulsão, porque também é ele que gera a falta que, por sua vez, revigora a exigência da satisfação (MURTA, 2009: 15) e esse movimento mantém o desejo constante. Pois, mesmo que uma pulsão seja saciada, a satisfação exigida será sempre maior que a alcançada, fazendo com que o desejo se revele novamente.

Para evitar os percalços da constante busca por satisfação e felicidade, Freud destaca que o aparelho psíquico trabalha no sentido de tender ao equilíbrio. Essa tendência e a produção daí decorrente são expressões do princípio do prazer e do trabalho conjunto das pulsões de vida e das pulsões de morte (MURTA, 2009:15). As pulsões de morte pertencem possuem exigência de satisfação total culmina em destruição; destarte, as pulsões de vida e possibilitam apenas satisfação parcial. Deve-se destacar que as pulsões só podem ser compreendidas enquanto correlatas. Para elucidar a questão da satisfação e da felicidade destaca-se a obra freudiana Mal Estar na Civilização (1996).

Freud afirma que o ego e o mundo externo ainda não são diferenciados pelo recém-nascido. Com o passar do tempo, o bebê começa a perceber que enquanto algumas fontes de excitação ligadas ao seu corpo emanam prazer a qualquer instante, outras fontes de prazer se distanciam e só re-aparecem após o choro. Um fator que auxilia na diferenciação do ego com exterior são as infinitas sensações de sofrimento e desprazer. Surge, então, uma tendência a isolar do ego tudo que pode tornar-se fonte de desprazer, a lançá-lo para fora e criar um puro ego em busca de prazer, que sofre o confronto de um ‘exterior’ estranho e ameaçador (FREUD, 1996: 76). Assim, por meio das restrições e pelos desprazeres oriundos da experiência é possível distinguir entre o que pertence ao ego - aspecto interno do homem - e o que decorre do mundo empírico.

Na relação ego e mundo exterior, a manifestação do sentimento de felicidade é sempre limitada pela constituição humana, já a infelicidade é a experiência mais habitual. Ou seja, a felicidade assim como a pulsão, ou o desejo, nunca é totalmente satisfeita. A compreensão de felicidade em Freud se traduz sob dois aspectos, a saber: evitar o sofrimento e ter experiências de prazer. O que pedem eles [os homens] da vida e o que desejam nela realizar? A resposta mal pode provocar dúvidas. Esforçam-se por obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer (FREUD, 1996: 84). A própria vida seria regida por essa constante busca de satisfação, ou seja, pelo princípio do prazer, o qual domina o funcionamento do aparelho psíquico de qualquer homem, desde o início de sua vida. A felicidade, compreendida como a satisfação das necessidades represadas pelo homem, é sempre representada por um prazer episódico que, se prolongado, transforma-se em fonte de prazer muito leve.

Neste sentido, é possível observar a relação entre a felicidade, a busca pelo prazer e o afastamento do sofrimento, com o desejo cartesiano. Todos os primeiros desejos (...) consistiram em receber as coisas que lhe eram vantajosas e rechaçar as que lhe eram prejudiciais (DESCARTES, 1987:170). Deste modo, o desejo impulsiona todo o corpo para o afastamento, mesmo que momentâneo, do mal e para a aproximação do bem.

Em contraste ao princípio do prazer, o princípio de realidade faz o sujeito perceber as exigências do mundo externo. Neste sentido, a satisfação alcançada é sempre menor que a desejada, ou seja, nossas possibilidades de felicidade são sempre restringidas por nossa constituição; e o sentimento de infelicidade é sempre mais fácil de experimentar (...) (MURTA, 2009:17). A momentânea sensação de felicidade que o sujeito experimenta manifesta-se como alívio diante do desprazer causado por intensos sofrimentos. O agravamento deste quadro leva o homem a diminuir seus desejos relacionados à felicidade e ao prazer. De tal modo, o princípio do prazer se transforma em princípio de realidade, que leva o homem a crer que é feliz pelo simples fato de ter afastado o sofrimento e a infelicidade. Portanto, o intento em evitar a dor coloca o princípio do prazer em segundo plano.

Em Mal Estar na Civilização (1996), se encontram três possíveis fontes de sofrimento humano: o poder superior das forças naturais, que podem voltar-se contra nós com forças esmagadoras e impiedosas (FREUD:85); a fragilidade e a decadência de nossos próprios corpos; e, por fim, o sofrimento que o autor reconhece como mais penoso: a dificuldade dos homens se adequarem às regras que buscam ajustar os relacionamentos com os seus, seja, na família, no Estado ou na sociedade. Para evitar o desprazer advindo dos relacionamentos sociais, o psicanalista destaca duas possibilidades: ou o sujeito se afasta da vida em comunidade e experimenta, em certa medida, a felicidade da quietude, ou se rende às condições impostas pela vida em comunidade, negando seus instintos para o bem de todos.

Para o afastamento do sofrimento, Freud (1996) destaca que o homem busca satisfações substitutivas, tais como a religião e o amor, que se contrastam com o princípio da realidade e diminuem a desgraça do indivíduo frente ao mundo exterior. (...) Cada um de nós se comporta, sob determinado aspecto, como um paranóico, corrige algum aspecto do mundo que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade (89). Outro caminho para fuga do mundo externo é via substâncias tóxicas que tornam o homem insensível à realidade cincurdante.

A ocorrência da frustração diante da sociedade sobrevém dos sacrifícios dos instintos que todos os humanos impõem a si mesmo para tentar viver em comunidade. Afinal, o homem possui consideráveis quotas de agressividade e o aparecimento destas ameaçaria a sociedade a se desintegrar. Neste sentido, a civilização encerra seus esforços para conter a agressividade do homem, distanciando-o de suas pulsões e de seus desejos.

 O autor afirma que o sentimento de culpa associa-se a renúncia às satisfações instintivas e se origina do medo. Ao se reportar a Descartes (1987), pode-se compreender o medo como um excesso de covardia, de assombro e de receio, que é sempre vicioso (...) (213). Para Freud, a culpa pode provir do medo da autoridade. Outra origem da culpa advém do medo do superego; neste caso, além da renúncia às satisfações instintivas, exige punição, pois (...) a continuação dos desejos proibidos não pode ser escondida do superego (FREUD, 1996: 95).

Na ocorrência do sentimento de culpa, proveniente do medo de autoridade, há renúncia à própria satisfação para que não ocorra perda do amor da autoridade. Deste modo, ao efetuar a renúncia (...) ficava-se, por assim dizer, quite com a autoridade e nenhum sentimento de culpa permanecia (FREUD, 1996: 126). O amor se apresenta, neste sentido, como uma busca pela felicidade a partir do relacionamento emocional com objetos do mundo externo, que podem ser compreendidos a partir da figura da autoridade.

De tal modo, a obtenção da felicidade advém da busca de toda satisfação em amar e ser amado (FREUD, 1996:89). A manifestação mais comum do amor se apresenta como o amor sexual, capaz de proporcionar intensas experiências de prazer e fornecer ao homem um modelo para busca da felicidade. No entanto, é comum ao sujeito experimentar o sofrimento enquanto ama, bem como, sentir-se desamparado e infeliz quando perde o objeto amado e o seu amor. Para evitar tais sofrimentos recorre à renúncia das satisfações instintivas e evita-se a perda do amor e o sentimento de culpa.

Além da renúncia às satisfações instintivas devido ao medo da autoridade, ao se considerar os esforços que a civilização emprega para não se destruir, destaca-se uma motivação interna para ocorrência da culpa, o superego. Este pode ser compreendido como uma instância psíquica que tem por função domar as pulsões agressivas dos homens. Neste sentido, o superego seria constituído a partir do sentimento de culpa, ou seja, pelo ônus de nossos avanços enquanto civilização a partir da negação de nossos impulsos e pelo afastamento da felicidade. Para melhor compreensão do aspecto interno da culpa, Freud esclarece:
 O superego é um agente que foi por nós inferido e a consciência constitui uma função que, entre outras, atribuímos a esse agente. A função consiste em manter a vigilância sobre as ações e as intenções do ego e julgá-las, exercendo sua censura. O sentimento de culpa, a severidade do superego, é, portanto, o mesmo que a severidade da consciência. É a percepção que o ego tem de estar sendo vigiado, dessa maneira, a avaliação da tensão entre os seus próprios esforços e as exigências do superego. O medo desse agente crítico (medo que está no fundo de todo relacionamento), a necessidade de punição, constitui uma manifestação instintiva por parte do ego (...) (FREUD, 1996:128).

A renúncia instintiva, efetuada no primeiro caso, não possui mais efeito. Deste modo, a infelicidade gerada pelo sentimento de culpa não possui motivador externo (castigo da autoridade ou perda do amor), a infelicidade interna motivada pelo superego pode tornar-se permanente com o sentimento de culpa.

Destaca-se que a educação e a cultura são fatores externos fundamentais na formação do superego. O superego cultural, fruto dos costumes de uma sociedade, tem como exigência a ética. Tanto o superego individual quanto o cultural formam uma consciência moral, ou seja, possuem o mesmo intuito de conter os instintos para a não dissolução da civilização. O sentimento de culpa pode acarretar tanto um ato violento concretizado quanto de um ato violento pretendido.

Em conclusão, o sentimento de culpa deriva da ambivalência do sentimento: ou agir agressivamente ou abster-se da ação que indiferente da intenção, resulta em culpa. Outra motivação deste sentimento será a constante luta entre Eros e o instinto de destruição. Neste sentido, a possibilidade da infelicidade externa, representada pela perda de amor e castigo da autoridade externa é substituída por uma permanente infelicidade imposta pelo sentimento de culpa. Assim, ao conter os instintos o sentimento de culpa cumpre sua finalidade e mantém a integridade da civilização. 


Referências Bibliográficas
Descartes, R. As Paixões da Alma. Tradução de Pascale Darcy. São Paulo: Martins Fontes. 1987 [1649].
Freud, S. Mal estar na civilização. Obras completas Rio de Janeiro: Imago 1996 [1929] v. X.
Murta, C. Humanização, vida e morte. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, Núcleo de Educação à Distância, 2009.



[1] Este artigo revisado para apresentação no III Simpósio de Pesquisa e Extensão em Filosofia – UFES (08 a 12 de novembro de 2010; é fruto do trabalho desenvolvido no projeto de pesquisa iniciação cientifica “Parthos: Estudo sobre a relação entre corpo e alma a partir das paixões manifestadas nas mulheres durante o período perinatal fundamentado nos pensamentos de René Descartes e Jacques Lacan”, orientado pela Profª. Claudia Pereira do Carmo Murta,).