terça-feira, 16 de novembro de 2010

"Desejo da mãe: uma paixão de Descartes a Lacan" Natalia Mendonça Magalhães

Desejo da mãe: uma paixão de Descartes a Lacan
Natalia Mendonça Magalhães


O presente trabalho consiste nos primeiros dados bibliográficos encontrados no desenvolvimento desta pesquisa em andamento, que está inserida no grupo de pesquisa e intervenção “PARTHOS”. Esta pesquisa visa à contemplação da paixão desejo, que para o filósofo René Descartes, “é uma agitação da alma provocada pelos espíritos que a tornam propensa a querer para o futuro as coisas que se lhe afiguram vantajosas, desse modo não se deseja somente a presença do bem ausente, mas também, a conservação do bem presente.”, ou seja, o desejo movimenta a alma em direção às coisas que lhes parecem benéficas.

Partimos da hipótese de que a influência do desejo pode gerar a segurança e a confiança na mulher na ocasião do parto e, também, como a vacilação do desejo é capaz de atrapalhar principalmente o parto natural, por decorrência do temor e do desespero. Ressaltamos a relevância da pesquisa, pois é esperado que os resultados possam ampliar as perspectivas sobre a compreensão dos sentimentos acometidos às mulheres puérperas.

Sendo assim, nos propomos a seguir a fronteira entre Filosofia e Psicanálise e nos perguntar sobre a relação entre corpo e alma na paixão Desejo da Mãe. Buscaremos estudar a base da Metafísica Moderna, a saber, o pensamento de René Descartes. Então seguiremos analisando as experiências do Desejo da Mãe relatadas em entrevistas de pesquisa eu estão sendo realizadas junto a gestantes e puérperas na Unidade de Saúde Tomaz Tomazzi.

Enfim, pretendemos encontrar, através do pensamento psicanalítico, ao modo da análise lacaniana, alguma resposta para a questão “o que é o Desejo da Mãe?”. Esperamos encontrar esta resposta voltando nosso olhar filosófico para a Idade Moderna, época em que a dicotomia entre corpo e alma expressou-se em matizes tão vívidas como o pensamento cartesiano e sua escrita sobre a paixão Desejo.
Introdução
René Descartes, em sua obra “As Paixões da Alma” (1649), direcionou em meio ao pensamento moderno do século XVII o estudo filosófico acerca dos afetos e da subjetividade. O filósofo propõe que, para conhecer as paixões da alma, é preciso distinguir entre suas funções e as do corpo. A alma está unida ao corpo, não havendo algo que esteja mais diretamente ligado ao corpo do que ela própria. O que na alma é uma paixão, no corpo é habitualmente uma ação. A regra para perceber as diferenças que existem entre o corpo e a alma se dá do modo a seguir. Tudo que observamos, sentimos em nós e em corpos inanimados deve ser atribuído apenas ao corpo (e será sempre uma ação). Igualmente, tudo o que observamos existir em nós e que não concebemos como pertencentes a um corpo, deve ser atribuído a alma (e será sempre uma paixão). Seguindo a concepção cartesiana, não existe possibilidade de haver uma paixão sem percepção. Sendo assim, paixões são percepções e para além disso, são pensamentos, uma vez que advém da alma.

Citamos o autor: “é fácil compreender que nada resta em nós que devêssemos atribuir à nossa alma a não ser nossos pensamentos, os quais são principalmente de dois gêneros, a saber: uns são as ações da alma, os outros são suas paixões” (DESCARTES, (2005[1649]), art. 17). Descartes classifica as nossas vontades em dois tipos: as ações da alma que terminam na própria alma e as ações que terminam no próprio corpo. As percepções também são de dois tipos. E umas têm como causa a alma, outras têm como causa o corpo. Nós nascemos condenados a sentir paixões. E essas paixões são de tal forma causadas, alimentadas, e fortalecidas pelos espíritos animais. O autor conclui que apesar de estarmos condenados a sentir paixões, podemos controlá-las. E o controle dessas paixões é uma questão de método.

A paixão é tudo o que, na alma, tem a própria alma como causa e o corpo como referência. Segundo Descartes, “o principal efeito de todas as paixões nos homens é que incitam e dispõem a sua alma a querer coisas para as quais elas lhes preparam os corpos” (art. 40). Desta forma, podemos identificar que a paixão testemunha a união entre corpo e alma, na medida em que esta pode vir a querer o que cada corpo foi preparado pelas próprias paixões para oferecer. Desse modo, o filósofo diz existir seis paixões primárias, a saber: a admiração, o amor, o ódio, o desejo, a alegria e a tristeza. Por conseguinte, todas as outras paixões compõem-se de algumas dessas seis fundamentais, ou então pertencem às suas espécies.

DESEJO
“(...) uma agitação da alma provocada pelos espíritos que a tornam propensa a querer para o futuro as coisas que se lhe afiguram vantajosas, desse modo não se deseja somente a presença do bem ausente, mas também, a conservação do bem presente (...) e, além disso, a ausência do mal”. DESCARTES, (2005[1649]), art. 86.

Desse modo, o Desejo se caracteriza pelo fato de estar projetado num objeto futuro, para conservação ou manutenção de algum bem, para a impulsão do corpo em direção ao objeto desejado ou para evitar algum mal. “Quando a alma deseja algo, todo o corpo se torna mais ágil e mais disposto a mover-se do que é seu hábito ser sem isso. E quando ocorre estar o corpo assim disposto, isso torna os desejos da alma mais fortes e mais ardentes” (art. 111). Isso revela uma ligação essencial entre corpo e alma. Nota-se que tal constatação é muito diferente das construções posteriores elaboradas pelas ciências médicas e por todo o pensamento mecanicista, embora de inspiração cartesiana.

A tradição filosófica, desde a Antiguidade aristotélica, comumente identificava as paixões a partir de seus opostos: amor e ódio, alegria e tristeza, euforia e melancolia. Entretanto, Descartes destaca uma característica peculiar do Desejo: a de ser a única paixão que não tem seu oposto. Para ele, visto que “não existe bem algum cuja falta não seja um mal (...) e que, por exemplo, ao procurar riquezas foge-se obrigatoriamente da pobreza” (art. 87), ou seja, o desejo é uma paixão que sempre busca um bem, e consequentemente se distancia de um mal. Contudo, a diferença entre o desejo que caminha em direção ao que é bom e o que tende a afastar-se do mal está nas paixões secundárias que lhe acompanham. No primeiro caso, o desejo geralmente aparece em conjunto ao amor, a esperança e a alegria; já no segundo, associa-se ao ódio, ao temor e a tristeza. A partir dessa compreensão, o autor assinala que não há paixão contrária ao desejo; o que mudam, na verdade, são seus objetos e as associações a outras paixões.

DESEJO DA MÃE
O Desejo é o sentimento mais forte que uma mãe pode apresentar no período perinatal. Quanto mais fortalecido estiver o desejo, maior é a garantia de concepção e gestação a termo. A mãe tem uma participação ativa em todo o período perinatal e o impulso para essa participação ativa é o desejo. A dificuldade no reconhecimento do desejo traz muitos sofrimentos desnecessários.

Várias são as faces do desejo no período perinatal: desejo de ter um filho; desejo de ter um parto; desejo de amamentar; desejo de ser mulher. O desejo da mãe deve ser dividido. “A mãe só é suficientemente boa se não o é em demasia, se os cuidados que ela dispensa à criança não a desviam de desejar enquanto mulher”. A função da paternidade é a de perceber que o desejo feminino é dividido entre a mãe que ela é para o seu filho e a mulher que ela é para ele. Quando ele consegue fazer a mãe que surge desejar como mulher ele consegue humanizar o desejo da mãe. A humanização do desejo da mãe é uma função do pai. (MURTA, 2009).

E PARA A PSICANÁLISE, O QUE É O DESEJO?
Essa questão nos remete a outras questões: O que é o desejo de cada sujeito? O que é o desejo da mulher?  O que é o desejo do filho?  O que é o desejo do pai?  O que é o desejo da mãe?  O que é o desejo do analista?  O que é o desejo de ser analisado? Portanto, vamos partir do início: O que uma criança deseja de sua mãe, ou do Outro, ao nascer?

Pela necessidade humana, há a questão da fome, sede, frio, o que é respondido à medida que a mãe dá a criança. Mas por ser atravessada pela linguagem, não lhe dá só o leite, às vezes não lhe dá nem o leite, mas pode dar a sua presença em forma de carinho, contato, palavras, olhar. E se dá a presença também pode dar a ausência, o que cria, ou transforma a necessidade em demanda (de amor). O que é da necessidade que não se articula em demanda (pedido/apelo) é reprimido e ressurge como objeto de desejo, que causa o desejo, objeto que está sempre perdido, pois nunca haverá objeto que satisfaça totalmente a necessidade.

O exercício da função materna pressupõe a prática de um desejo. Mas qual desejo?  O desejo do falo. É somente a partir de uma medida trazida pelo falo que um sujeito poderá responder, sem graves incidentes, às necessidades de seu parceiro na relação sexual[1]. Seguindo o desenvolvimento da feminilidade na mulher, vemos então a maternidade como resposta à castração.  A menina, reconhecendo que lhe falta algo, passa a querer algo que lhe complete:  ter um filho no lugar de falo.  O filho, inicialmente identificado como esse objeto de desejo da mãe, fica sujeito ao desejo materno, encontrando-se numa situação de dependência absoluta, onde a mãe situa-se como onipotente frente à criança.

Esta onipotência, representada pela tríade mãe-criança-falo, só poderá ser rompida com a efetivação da função paterna, para que esta criança saia do lugar de falo, tornando-se filho, e para que a mãe torne-se ocupante do lugar – ainda que hiato – de mulher.




Referências:
DESCARTES, René. As paixões da alma. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
LACAN, Jacques. O Seminário livro 4: A Relação de Objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
LACAN, Jacques, “Significação do falo, A” [1958] in Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
MURTA, C. (org.). Humanização em saúde: Gestação, parto e nascimento, Puerpério. No prelo.
MURTA, C. (org.). Humanização, Vida e Morte. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, Núcleo de Educação Aberta e à Distância, 2010.
MURTA, C. (org.). Corpo, Alma e Paixões. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, Núcleo de Educação Aberta e à Distância, 2009.


[1] LACAN, Significação do falo, A (1958), p. 692.