sexta-feira, 3 de junho de 2011

Algumas considerações acerca da importância do mito no contexto do pensamento platônico - Anallu G. Firme Lorenção




Nos Livros II e III do diálogo platônico A República, Sócrates envereda pela discussão a respeito da educação da classe dos guardiões, tema que, no percurso do diálogo, se impõe como uma etapa essencial do desdobramento da pólis, e, conseqüentemente, importante para o encontro da justiça, questão propulsora do diálogo. O início da educação será destinado a modelar, moldar, a alma do guardião, visando imprimir, marcar, em sua natureza dupla, ao mesmo tempo animosa e filosófica, as virtudes essenciais à sua constituição. Partindo deste contexto educacional da República, pretendemos, neste texto, indicar como o cuidado socrático, no primeiro momento da discussão sobre a educação, voltar-se-á para a constituição dos mitos, aqui pensados em seu caráter de imagem, uma vez que elas aparecem como os primeiros moldes, modelos educacionais.  

Acreditamos que as imagens mitológicas, responsáveis pela primeira orientação educacional, constituem, neste momento inicial, a base, o fundamento, da educação. Elas serão compreendidas como os modelos que norteiam a formação e apresentam aos aprendizes as virtudes necessárias a serem interiorizadas. Neste contexto, o ambiente sensível é o que ocasiona uma impressão norteadora, direciona o guardião, e lhe permite, futuramente, reconhecer o caminho da verdade.      

A conhecida censura platônica às imagens míticas de Hesíodo e Homero, presentes nos Livros II e III, só se tornam compreensíveis se visualizarmos anteriormente a importância concedida às imagens neste momento inicial. É só por sua suma importância e potencialidade, no momento preciso da formação da classe dos guardiões, que se torna necessário todo o cuidado atento na manutenção e censura dos mitos, que, mesmo na nova proposta educacional platônica, permanece como a etapa inicial intransponível da educação. 

A ambição de afirmar a importância das imagens sensíveis a partir da República pode parecer, a princípio, estranha, uma vez que nos habituamos a encontrar no diálogo uma das mais claras distinções entre os âmbitos sensível e inteligível, ilustrada com freqüência pela imagem da linha dividida, pelo mito da caverna; bem como a recorrentemente afirmada hierarquização entre os âmbitos, onde as imagens e o sensível são apontados como etapas a serem vencidas na busca pelo conhecimento e pela verdade. Também se localiza na República a expulsão platônica dos artistas da pólis, sobre a acusação de suas obras distarem três graus da verdade; expulsão que guarda o peso de ser a mais conhecida opinião do autor sobre a arte. Sabemos que o texto platônico nos fornece elementos teóricos para sustentar a necessidade de se alcançar o âmbito inteligível no caminho pelo conhecimento verdadeiro, e tomando como base esta necessidade, a imagem se apresenta falha à medida que pode propiciar o engano e o erro. Mas também é importante assinalar que existem outros enfoques e possibilidades de abordar a questão da imagem dentro do diálogo A República e do pensamento platônico. Acreditamos que a maneira como a educação dos guardiões é elaborada pelo pensador nos fornece elementos textuais significativos para problematizar a interpretação corrente que identifica em Platão apenas um depreciador da imagem e do sensível.

Diante da aparente ambigüidade que o texto nos apresenta, entre a necessária presença das imagens no contexto educacional e a também necessidade de se transcender o âmbito imagético para se alcançar a verdade, a questão que nos motiva, neste momento, é saber qual a função das imagens neste caminho educacional, que, da maneira como Platão nos apresenta, parece não ser passível de ser menosprezada, uma vez que ocupa uma boa parte da discussão sobre a formação e é necessária, pelo menos, durante várias etapas do processo de constituição do guardião.          

Apesar de aparentemente intencionar construir uma educação sobre novas bases, que não as afirmadas pela tradição grega, Sócrates inicia sua discussão sobre o tema da educação aderindo ao costume paidêutico tradicional: ginástica para o corpo e música para a alma[1]. O começo da educação deverá ser destinado à alma e marcado essencialmente pela Música, arte das musas, e conseqüentemente pelo logos, linguagem. Na linguagem, ainda seguindo a tradição, decide-se por começar através da enunciação dos mitos. Posteriormente, veremos que mesmo a ginástica será, em última instância, considerada uma formação destinada à alma, e irmã gêmea da Música, uma vez que ambas têm a função de ajustar harmonicamente as seguintes características dos guardiões, coragem e sede do saber[2].     

O lugar comumente aceito dos poetas na educação dos jovens gregos e a força pedagógica dos mitos, enquanto os primeiros discursos formadores, são questões não problematizadas pelo pensador nas suas considerações sobre a educação pela música. Quando questionado por Adimanto a respeito de que mitos devem ser contados, Sócrates, por sua vez, marca expressamente a sua diferença em relação ao poeta. Ele se autodenomina um “fundador de cidade”, cuja função é conhecer os modelos segundo os quais os poetas plasmaram suas concepções e não permitir que se afastem deles[3]. Tendo como base essa passagem, fica evidente para nós que não compete aos fundadores da pólis a tarefa de construir mitos, trabalho destinado aos poetas. Cabe-lhes, por outro lado, o exercício de manter a composição dos mitos com vistas ao seu fim último, a saber, o de formar os guardiões nas virtudes[4].

O cuidado socrático, como um “fundador de cidade”, limitar-se-á, neste momento inicial da discussão sobre a educação, a passar em revista o conteúdo dos mais importantes mitos tradicionais gregos. O filósofo manterá na pólis apenas os que expressam, em seus conteúdos imagéticos, virtudes, que sirvam de modelos à classe necessitada de formação; os outros, contrários a proposta, são censurados e excluídos da cidade. Os conteúdos dos mitos precisam, desta forma, estar ajustados e em concordância com as virtudes necessárias à classe específica a quem a formação se destina. Nas passagens dos Livros II e III onde ocorre a discussão referida, as virtudes cardinais essenciais a classe dos guardiões, a saber, a sabedoria, a coragem, a temperança e a justiça, ainda não foram elencadas expressamente. É interessante como a análise do conteúdo dos mitos, ou seja, a maneira como os deuses, os heróis, o Hades e os homens devem ser representados nas construções imagéticas, já está, de algum modo, fundamentada nas quatro virtudes, que só serão efetivamente enunciadas e esclarecidas posteriormente no Livro IV. A análise do conteúdo dos mitos apresenta-se, desta maneira, como uma antecipação do tema relativo às virtudes cardinais essenciais aos homens do Livro IV. Esta antecipação torna-se evidente quando percebemos como a discussão sobre os deuses vincula-se à virtude da sabedoria, a sobre o Hades à coragem, a sobre os heróis à temperança e a sobre os homens à justiça. Parece-nos que as quatro virtudes são os modelos, acima mencionados, nos quais os poetas da cidade platônica precisam se fiar para plasmar suas concepções expressas nos mitos. Os “fundadores de cidade”, por sua vez, necessitam conhecê-los e cuidar para que a educação da classe se encaminhe no sentido de uma formação para as virtudes, formação que necessariamente se inicia com a imersão das crianças na linguagem mitológica.         

Parece-nos que mitos, neste momento inicial, serão censurados por seu caráter imagético e sensível, pelo contrário. É pela importância e função das imagens, no inicio da educação, que será necessária toda a preocupação em analisar o conteúdo dos mitos a fim de manter no ambiente da pólis apenas os que sirvam para a proposta educacional preconizada. Os mitos se inserem, neste contexto, como modelos educacionais, que através de imagens sonoras apresentam, indicam os valores essenciais à constituição da classe a quem a formação se destina.
 
Podemos perceber esta importância dos mitos em uma passagem do Livro II, essencial para a compreensão da abordagem aqui proposta. A afirmação socrática versa em torno do significado do mito: Ora, essas histórias, de modo geral são mentirosas, porém contêm algo de verdadeiro[5]. Sócrates, na afirmação referida, antes de discutir o conteúdo dos mitos passíveis de serem apresentados aos guardiões, assinala expressamente a sua essencial ambigüidade. A narrativa mitológica é, desta forma, pedagogicamente requisitada por seu caráter de mentira, pseudos, e também de verdade, alethéia, ambos apresentados como necessariamente inclusos na educação, com a ressalva de ser imprescindível começar pelo discurso falso, logos pseudos.

Esta caracterização do mito, presente do Livro II da República, nos parece importante dentro do contexto do pensamento platônico, uma vez que aproxima numa mesma sentença a ambigüidade de tratamento do autor sobre o tema em questão. Esta ambigüidade também pode ser identificada em outros contextos dos diálogos, quando nos deixamos encaminhar pelo próprio texto platônico e não pela leitura tradicional que, na ânsia de definir e circunscrever a filosofia contrapondo-a à mitologia, tende a salientar e interpretar de maneira apressada apenas as passagens onde o filósofo atribui uma função secundária ao mito ou o desqualifica ao compará-lo ao lógos filosófico. Não temos a pretensão, neste momento, de fazer uma análise geral do pensamento platônico sobre o tema em questão, nem de afirmar que no conjunto das obras platônicas todas as considerações do autor sobre o mito tendem a um único sentido. Nossa abordagem da sentença citada pretende, por outro lado, pensar a ambigüidade de caracterização do mito como um caminho possível para pensar a função da imagem na educação dos guardiões. Parece-nos possível propor esta aproximação, uma vez que os mitos aparecem no Livro II como as primeiras imagens formadoras dos guardiões.         

A ambigüidade da afirmação referente o mito nos suscita um questionamento a respeito de como a verdade e a falsidade podem ser compreendidas a fim de que se conjuguem desta maneira. Como o mito pode ser verdadeiro e falso? O caminho educacional construído por Sócrates terá seu início marcado pelo logos falso, mitológico, para posteriormente encaminhar-se para o verdadeiro, encaminhamento que tendemos a compreender a partir da distância geralmente afirmada entre o mito e a filosofia. O texto platônico, entretanto, nos apresenta um elemento textual que nos permite problematizar a distância freqüentemente aceita entre o mito, compreendido como um discurso ficcional, falso, e a filosofia, associada à verdade apenas acessível pelo entendimento. O mito também contém algo de verdadeiro[6], e precisa apresentar-se como uma mentira bem contada[7], que guarde fidelidade com a dimensão original à qual faz referência.
        
A falsidade, a mentira, do mito é facilmente identificada a partir do seu caráter narrativo. As histórias mitológicas narradas não ambicionam representar fidedignamente os âmbitos e as experiências a que recorrem. Elas podem ser consideradas falsas, se recorremos à necessidade de verificabilidade, uma vez que não são passíveis de serem conferidas ou verificadas, pois estão associadas a dimensões desconhecidas pelo homem. Um dos motivos pelos quais elas são necessárias é por se apresentarem como a única maneira de enunciar determinados assuntos, que na insistência humana pelo conhecimento permanecem como questões essencialmente desconhecidas[8]. Estas questões geralmente vinculam-se a dimensões ocultas, instâncias aos quais lhe foi privado o conhecimento, como o antes do nascimento e o depois da morte, impossíveis de serem indicadas pela linguagem sem se resguardar o seu mistério característico. Parece-nos ser por seu próprio caráter de ocultação, de mistério, que estas questões precisam sempre permanecer no âmbito da linguagem, entrelaçadas à falsidade, necessária, desta forma, para mantê-las fieis ao seu modo de ser próprio.

A imagem formada na narrativa, antes de significar algo para além dela, apresenta uma realidade plástica cuja força não está em explicar a superioridade da verdade, mas sim em apresentá-la, impô-la de alguma maneira, ou seja, a narrativa não explica, não se vale de uma argumentação lógica, o seu discurso é impositivo, à medida que estabelece imageticamente uma verdade. Parece-nos que a verdade do mito se institui imediata e imperceptivelmente, em detrimento do sentido vinculado à capacidade de entendimento do homem. O sentido, nesta experiência, acaba constituindo uma instância secundária, que muitas vezes permanece encoberta, face à força imagética do discurso falado. A experiência do mito aproxima-se, desta forma, neste momento, a uma experiência estética, onde a vivência da imagem discursiva promove uma sensação que, de alguma maneira, passa a orientar o homem. A força da sua reincidência, neste contexto educacional, impregna, penetra, fixa a sua marca nos cidadãos, e, deste modo, é capaz iniciar a sua formação.

Esta maneira da verdade se apresentar no mito, entretanto, não está vinculada à verificação nem à comprovação empírica. É evidente que as histórias fantásticas às quais os poetas recorrem não são derivadas de nenhum acontecimento efetivo que possa servir de parâmetro avaliativo para o mito. Parece-nos que a verdade apresenta-se no mito apenas como uma indicação, um aceno, uma marca plástica de direção. Direção esta que, apesar de aparecer para os espectadores como a certa a ser seguida, não fornece os elementos necessários ao esclarecimento da sua suposta exatidão. Mas mesmo sem ser passível de ser compreendida, acreditamos que, neste contexto, o mito, enquanto a primeira imagem educacional, assume a função de encaminhar, por sua força de contágio, a um aceno, a um vislumbre da verdade.

Sócrates, antes de começar a análise dos mitos, afirmará a necessidade de se contar “bem” a mentira mitológica. Segundo o filósofo, não são todas as narrativas que retratam as coisas como elas efetivamente são em sua essência. Ele exemplifica a questão explicando que muitas vezes Hesíodo e Homero fizeram uma descrição errônea do que se propuseram a retratar[9], como mostram as suas narrativas sobre os deuses e os heróis que os apresentam se portando muito diferente da maneira como eles realmente são. A requisição socrática de apresentar os deuses tal como eles são em sua essência[10] fundamenta-se no perigo associado à enunciação de determinadas fábulas, uma vez que elas são vistas como exemplos, modelos para a formação dos indivíduos. Mesmo assumindo o sentido alegórico das histórias, vemos que Sócrates continua afirmando a importância da construção de imagens mitológicas voltadas para as virtudes, base da formação dos guardiões. Sobre a questão nos diz Sócrates: Por isso mesmo, importa, antes de mais nada, que as primeiras criações mitológicas por eles ouvidas sejam compostas com vistas à moralidade[11].   
  
Na ambigüidade da caracterização platônica do mito, o que nos parece importante de ser assinalado é como, na educação dos guardiões, a força do discurso mitológico aparece associada ao seu caráter de velamento, ocultação. Ou seja, a particularidade do mito, que muitas vezes é apontada, mesmo pelo próprio Platão, como o seu caráter problemático, pois não concede a sustentação necessária para explicar e questionar o que está apresentado, na educação dos guardiões constitui a positividade do seu elemento formador. 

Os mitos precisam, desta forma, ser censurados e vigiados por seu grande caráter formador. É necessário para a constituição da classe dos guardiões que só restem e se mantenham na cidade os que forem compostos para o fim almejado, a boa formação da classe. A crítica tecida por Platão aos poetas formadores da cultura grega, Hesíodo e Homero, só pode ser compreendida se não deixarmos de vislumbrar a intenção do filósofo neste momento preciso do diálogo. Assim como os poetas, todos os artífices produtores de imagens, para permanecerem na pólis, precisam manter-se fiéis a proposta educacional. A respeito desta questão nos diz Sócrates:
Mas, teremos de restringir nossa vigilância apenas aos poetas, para obrigá-los a só representar em nossas composições modelos de bons costumes, sem o que deverão abster-se de compor entre nós, ou precisaremos estender aos demais artistas esta fiscalização, para impedi-los de representar o vício, a intemperança, a baixeza, a indecência, tanto na pintura da vida como na das construções e em todos os trabalhos dos artesãos, ficando proibido exercer a sua atividade entre nós quem não puder obedecer a essas determinações? É de temer que venham crescer os guardas no meio de imagens do vício, como num pasto nocivo, em que colham e ingiram pequenas, porém reiteradas doses de veneno das mais variadas espécies, do que resulta causarem na alma, imperceptivelmente, dano irreparável[12].
Deste modo, tendo em vista a importante função dos mitos e a formação específica que se busca construir, faz-se necessário um processo de triagem, onde serão revistos todos os mitos formadores, e permanecerão apenas os que acompanham os tipos, os modelos, necessários à constituição do guardião.



[1] PLATÃO, República. Tradução de Carlos Alberto Nunes, Belém: EDUFPA, 2000. 376e.
[2] Ibid., 411e.
[3] Ibid., 379a.
[4] Ibid., 378e.
[5] Ibid., 377a.
[6] Ibid., 377a.
[7] Ibid., 377d.
[8] Ibid., 382d.
[9] Ibid., 377d-e.
[10] Ibid., 379a.
[11] Ibid., 378e.
[12] Ibid., 401b-c.