quinta-feira, 18 de novembro de 2010

"WITTGENSTEIN E A QUESTÃO DA INTERIORIDADE" Filicio Mulinari e Silva


WITTGENSTEIN E A QUESTÃO DA INTERIORIDADE[1]

Filicio Mulinari e Silva[2]


Resumo:
Esta comunicação tem como objetivo apresentar uma investigação sobre a noção de interioridade proveniente da filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein. O trabalho tem o intuito de mostrar, a partir da relação entre mente e linguagem, uma alternativa à problemática metafísica da relação entre interior e exterior para além das tradicionais teses dualistas e monistas que alegam uma suposta privacidade epistêmica sobre o interior. Tendo como referência as obras Investigações Filosóficas e Últimos Escritos sobre a Filosofia da Psicologia, busca-se uma compreensão da noção de interioridade não como uma entidade privada, mas como uma pseudo-entidade associada a formas lingüísticas, que se destaca principalmente na assimetria existente entre os discursos de 1ª e 3ª pessoas.
Palavras-Chave: Interioridade, Linguagem, Solipsismo, Wittgenstein.

O problema da interioridade
A questão em torno da relação entre interior e exterior, apesar de não ser recente na filosofia, ainda gera debates freqüentes e acirrados entre os filósofos contemporâneos. Desde os gregos já podia ser notado uma importância dada para algo que se acreditava interior ao ser humano. A máxima socrática do ‘conhece-te a ti mesmo’ e a visão dualista de Platão sobre a realidade são exemplos disso.
No período Medieval, “[...] a visão do homem como possuidor de duas substâncias distintas persiste, sobretudo, pela conversão do termo ‘interior’ à idéia cristã de alma”.[3]
No entanto, é com a advinda da modernidade que a noção de interioridade como problema começa a se acentuar. A partir da tese do filósofo francês René Descartes (1596-1650), que via a realidade como possuidora de duas substâncias distintas, a saber, res cogitans (alma) e res extensa (corpo), o interior começou a ser compreendido e interpretado segundo duas teorias divergentes, a saber, segundo teorias dualistas ou segundo teorias monistas.
Fundamentados na tese iniciada por Descartes, os dualistas afirmam que há duas realidades ou substâncias distintas e independentes: a material e a espiritual. A realidade material é física, pode ser definida como a realidade do mundo físico e é passível de observação pelos sentidos. Já a realidade espiritual é não-física e imaterial e pode ser classificada como realidade mental.
Em oposição aos dualistas, os materialistas argumentam que a única coisa da qual pode se afirmar a existência é a matéria e, por isso, defendem a unidade material da realidade e a identidade entre mente e corpo enquanto matéria.
Entretanto, seja para a tese dualista, seja para a tese materialista, o interior sempre foi visto como algo privado e acessível somente para o sujeito da experiência. Nesse sentido, o interior seria uma entidade sobre a qual o sujeito tem uma espécie de ‘autoridade de conhecimento’, uma vez que o sujeito possui um conhecimento direto e preciso sobre seu próprio interior (sensações, experiências, etc.).
Além dessa ‘autoridade’ de conhecimento, deve-se frisar também uma suposta ‘privacidade’ do conhecimento sobre o interior, pois somente o próprio sujeito tem acesso à sua cena mental e pode descrever com evidência e certeza os objetos que aí ocorrem. Nesse sentido, outras pessoas teriam apenas um ‘acesso indireto’ ao que supostamente se passa no interior de outra pessoa, sendo impossível realmente saber o que se passa nele. Logo, o conhecimento do interior seria um conhecimento ‘privado’.

A solução de Wittgenstein
            Ludwig Wittgenstein (1889-1951) fez uma importante crítica a essa suposta ‘privacidade’ do conhecimento, bem como uma crítica da ‘autoridade’ de conhecimento da 1ª pessoa sobre o interior. Nos seus escritos tardios,[4] Wittgenstein criticou a privacidade epistêmica do conhecimento sobre o interior e, em oposição a esta teoria, argumentou que a referida ‘privacidade’ é na verdade um problema de linguagem e não um problema epistemológico ou ontológico. Como salienta Marques (2003, p. 13), a tese que Wittgenstein levantou é a de que:
O interior é uma pseudo-entidade que se deve associar, não à imagem de uma caixa a que apenas o próprio sujeito tem acesso, mas sim a formas lingüísticas expressivas que introduzem assimetrias inultrapassáveis entre a perspectiva da 1ª pessoa e da 3ª” (MARQUES, 2003, p.13).
Assim, um novo olhar sobre a questão do interior aparece com as obras de Wittgenstein, principalmente devido à consideração de que o problema é uma questão de linguagem. É importante ressaltar que a originalidade da abordagem de Wittgenstein sobre o tema não se distingue das outras abordagens presentes na história da filosofia pela importância dada à linguagem, mas sim por elucidar que o interior atua pela linguagem. “[...] Para Wittgenstein a descoberta do interior é obtida pela reflexão sobre os usos da linguagem que exprime o interior”.[5] É a linguagem que une a relação entre interior e exterior e torna, com isso, o interior como algo real e não-privado.
Para Wittgenstein, a distinção entre natureza interior e exterior, ao invés de ontológica, seria gramatical. O objetivo do filósofo em seus últimos escritos era o de fazer uma consideração gramatical sobre os usos e os termos psicológicos tal como acontecem na sua expressão ordinária. Desse modo, podem-se afirmar dois pontos importantes para a compreensão daquilo que formará a noção de interior em Wittgenstein.
O primeiro ponto remete a uma possível assimetria entre 1ª e 3ª pessoa. Nesse sentido, Wittgenstein defendeu que as vivências de primeira pessoa podem ser compreendidas quando expressas a alguém que compartilha a mesma forma lingüística. O que Wittgenstein defende é que as sentenças como ‘eu estou com dor’ e ‘ele está com dor’ têm funções diferentes na linguagem ordinária: a primeira expressa, a segunda descreve. Dessa forma, verbos intencionais (pensar, desejar,...) não correspondem a fenômenos que podem ser apontados ou referenciados no interior da mente, pois a função dos verbos intencionais é expressar, não descrever ou designar.
O segundo ponto remete a variação da natureza da linguagem. É um ato ilusório crer que o interior seja um conjunto de coisas que podem ser designadas pela linguagem, principalmente na crença de que a linguagem é descritiva por essência. Conforme ressaltado por Wittgenstein, a linguagem possui diferentes funções que se enquadram e significam, por sua vez, diferentes contextos. Para uma melhor compreensão, tem-se o exemplo da ‘caixa de ferramentas’:
Pense nas ferramentas dentro de uma caixa de ferramentas: encontram-se aí um martelo, um alicate, uma serra, uma chave de fenda, um metro, uma lata de cola, pregos e parafusos. – Assim como são diferentes as funções desses objetos, são diferentes as funções das palavras. (...) O que nos confunde, sem dúvida, é a uniformidade de sua manifestação, quando as palavras não são ditas ou se nos apresentam na escrita e na impressão. Pois, seu emprego não é tão claro assim. Especialmente quando filosofamos! (WITTGENSTEIN, 1996, §20-21).
A exteriorização lingüística é, segundo Wittgenstein, a condição de verificabilidade do estado interior: se alguém diz que conhece seus próprios estados interiores/mentais e que outra pessoa não pode nunca saber, mas somente inferir por analogia, tal pessoa cometerá um erro de análise gramatical. Deve-se ressaltar aqui que, se a falta de condições fosse sempre colocada em questão quando se expressa tais estados, então seria muito improvável a continuidade de qualquer tipo de comunicação entre o ‘meu interior’ e aquilo que é vivenciado pelos outros.
Noutras palavras, se as vivências interiores do individuo adquirissem significado a partir do próprio indivíduo, os conceitos mentais (como tristeza, dor, etc.) seriam irredutivelmente subjetivos, ou seja, seriam essencialmente privados no sentido que somente o sujeito que experimenta a dor ou tristeza poderia saber se sua vivência corresponde ao comportamento externo.
Contudo, Wittgenstein rejeita essa perspectiva que afirma que as vivências interiores possuem significado a parti de si mesmas. Ao procurar desconstruir a compreensão descritiva de um interior, Wittgenstein afasta a imagem de que cada um consegue olhar para este interior como lugar privativo. A assimetria entre a primeira/terceira pessoa aparece nesta relação entre o uso lingüístico e o âmbito das experiências privadas numa visão panorâmica. Segundo Marques, no “âmbito de tal visão panorâmica das gramáticas dos verbos cognitivos é dizer que ele defende uma noção consensualista de verdade e é ela que determina as formas possíveis de correspondência entre linguagem e mundo” (MARQUES, 2003, p.136). Desse modo, Wittgenstein procura mostrar que é na concretude da gramática que acontece a compreensão daquilo que usualmente se chama de interior.
Em suma, os apontamentos de Wittgenstein procuram dar uma luz às confusões gramaticais que são associadas à expressividade das vivências interiores. A dicotomia existente entre interior/exterior é resolvida na dimensão expressiva da linguagem, principalmente naquilo que ficou conhecido como argumento da linguagem privada, que alega uma impossibilidade de etiquetagem interna das sensações a partir do próprio sujeito da experiência.
Dessa forma, Wittgenstein se opôs à maioria dos filósofos tradicionais da história da filosofia, uma vez que o interior agora não é uma entidade privada da qual apenas o próprio sujeito tem acesso, mas sim algo público que é expresso e atua na linguagem.[6]


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PERUZZO JÚNIOR, Léo. Considerações sobre o “interior” em Ludwig Wittgenstein. Dissertação (mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-PR. Curitiba, 2010.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Últimos Escritos sobre a Filosofia da Psicologia. Trad. António Marques, Nuno Venturinha, João Tiago Proença. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.


[1] Comunicação apresentada para o “III Simpósio de Pesquisa e Extensão em Filosofia da UFES”,  no ano de 2010.
[2] Aluno do curso de graduação em Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo.
[3] PERUZZO JÚNIOR, 2010, p. 21.
[4] Escritos tardios refere-se, aqui, as obras Investigações Filosóficas e Últimos Escritos sobre a Filosofia da Psicologia.
[5] MARQUES, 2003, p. 13.
[6] Deve-se ressaltar que Wittgenstein não se preocupa em sua teoria da natureza do interior, mas sim do modo de como a exteriorização do interior acontece por meio de uma linguagem pública e intersubjetiva.

Um comentário:

  1. Olá!
    Lançei o livro: Wittgenstein: o interior numa concepção pragmática.
    Meu e-mail: leo.junior@pucpr.br
    Prof. Léo Peruzzo

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