quarta-feira, 3 de novembro de 2010

"O conceito de má-fé na obra “O ser e o Nada” de Jean Paul Sartre" Siloe Cristina

 O conceito de má-fé na obra “O ser e o Nada” de Jean Paul Sartre
Siloe Cristina

Analisaremos aqui as tentativas reflexivas que o homem faz para fugir da liberdade. Ante a responsabilidade de criar seus próprios valores e significar o mundo o homem inventa desculpas, justificativas e determinismos, tenta se eximir refugiando-se num falseamento existencial ou condutas de má-fé. 

Para compreender a tentativa fracassada de fugir da liberdade precisaremos desvelar as condições de possibilidade em que ela surge,  porque ela existe e como esse falseamento existencial é impossível de ser efetivado. Iniciaremos, portanto a partir da Obra “O Ser e o Nada” de Sartre, mostrando o que é o homem, consciência intencional, como isso implica a liberdade ontológica e absoluta, e porque essa liberdade absoluta é ao mesmo tempo concreta. Ela se mantém mesmo em crises, guerras ou tempos de escravidão, pois é em situação que o homem criará a si mesmo a partir do nada.

Por conseguinte veremos que a responsabilidade por seus próprios valores, por fazer a si mesmo pesa, gera a angústia e o homem tenta escapar a isso com desculpas ou anestésicos. Para tal vale tudo: personalidade, inconsciente, natureza humana, código genético, igreja, costumes, cultura, história, ideologias, conselheiros, demônios e o que mais puder fornecer uma justificativa pelos atos. 

Essa falsificação existencial porém, não pode ser tida como uma mentira ou um recalque do qual não tenho consciência. A mentira pressupõe uma tentativa de enganar o outro em que, tendo consciência da mentira, o mentiroso não acredita que a mentira seja verdade, deseja apenas ludibriar o outro. Enquanto que a má-fé é uma mentira de si a si mesmo, sem a polarização enganado-enganador já que, a consciência é intencional, como passaremos a ver, o homem é plenamente consciente do engano que ele mesmo faz[1]. Por não ser uma coisa, a consciência não tem um interior com essência pré-moldada ou personalidade que defina o comportamento, ela é translúcida sem um departamento onde engavetar as coisas ou uma substância que impulsiona a ação, é consciência de si a si, de ponta a ponta.

Os objetos ou mundo são “ser-em-si”, plenos, completos, sem interior ou exterior. Já o homem é “ser-para-si” pura relação intencional com o objeto, um processo que coloca o objeto como existente no mundo, percebe suas manifestações, identifica a mudança, o espaço e o tempo, significações que só ganham sentido porque uma consciência tem conhecimento delas[2]. A consciência é sempre consciência de “algo”. Isto é a intencionalidade, mais precisamente, movimento da consciência em direção às coisas.

Se “Toda consciência é consciência de [...] que não é” [3] o homem não se identifica com o objeto percebido ou imaginado, ele sabe que é consciência desse objeto, sem se confundir com ele. Por conseguinte o homem é uma negatividade essencial que não se identifica com o objeto visado, e por ele “não-ser” em seu modo de ser, ele pode desprender-se das coisas, e voltar-se pra elas.

O homem não se identifica com as coisas nem com ele mesmo: há uma falta de “si”,  é esse nada existencial constitutivo que o permite se movimentar e se dirigir em direção às coisas. Por ser incompleto ele busca esse “si” que lhe daria completude numa tentativa fracassada e paranóica: ter uma essência fixa e ainda assim permanecer como falta de ser aberta a possibilidades, isto é, ser-em-si-para-si.

Em suma o homem é ontologicamente livre por ser consciência intencional, falta de “si”, nada de ser, descolado das coisas, sem identificação com nada, vazio sem essência, sem determinações. A única possibilidade de existência do homem é ser liberdade absoluta.

Para demonstrar a condição humana Sartre usa em seu livro “O existencialismo é um humanismo” o exemplo de um corta-papel. Um corta papel é ser-em-si, objeto fabricado para exercer determinada função utilitária, sua essência e propriedades já foram definidas durante a produção antes de sua existência. Já o homem constrói a si mesmo, sua “existência precede a essência”. De inicio, o homem é um projeto que se vive a si mesmo subjetivamente ao invés de musgo, podridão ou couve-flor, nada existe antes desse projeto; não há inteligibilidade no céu, e o homem será apenas o que ele projetou ser”. (SARTRE, 1999, P.6) O homem escolhe a si mesmo dentre as diversas ações concretas possíveis, mas uma decisão ou escolha não perdura para além do momento presente, pois as possibilidades não se esgotam.

Sartre usa o exemplo de um jogador viciado no qual todos os argumentos que ele organizou para não jogar ontem, e sua determinação em não jogar, não o determinam ou impedem que ele não jogue hoje. Ele é livre, e será confrontado com a possibilidade de jogar a cada momento. O passado é incapaz de determinar o homem. Com relação ao futuro, Sartre exemplifica com um homem caminhando a beira do abismo, a angústia surge quando percebe que naquele momento ele pode imaginar seu futuro voltando para cidade e tentar sair daquela situação com cuidado, como também poderia abrir os braços e se suicidar.... E não existe nenhum fundamento ou valor moral que o impeça de se jogar ou o force a voltar para sua casa. O futuro pode ser modificado a cada instante, e é na ação que o homem determina seus valores, não o contrário.

Só há o nada em nosso ser e, toda escolha é absurda porque não tem nenhum fundamento ou necessidade, no entanto a todo o momento somos confrontados por uma nova decisão, isto é a liberdade, que implica a ausência de justificativas bem como a total responsabilidade. A consciência refletida da liberdade absoluta pesa, é difícil suportá-la.

A pergunta a que se põe é: se o conhecimento do absurdo da condição humana é algo que pesa, gera angústia, é possível a um simples homem enfrentá-la? Sartre, como veremos, afirma que o homem esconde o sentimento da angústia não refletindo sobre ele, ou inventando desculpas para suas ações. Falsear a liberdade e fugir da própria condição ontológica se apresenta como um anestésico para angústia, por isso a reação mais comum é a má-fé. Incapaz de viver com esse peso, o homem mascara essa situação, forja um sentido para sua vida, inventa determinismos ou deixa-se levar pelo espírito de seriedade.

O sentimento de angústia não é apreendido a todo o momento por dois motivos: primeiro porque no cotidiano não colocamos a justificação de cada ato em jogo, nem adotamos uma perspectiva reflexiva diante de cada ação, e segundo porque inventamos desculpas tentando solapar a liberdade e assim a responsabilidade.

Rotineiramente agimos com “espírito de seriedade” como se existissem valores prontos provindos do mundo, as obrigações estivessem determinadas, ou como se certas empresas fossem impossíveis. Mas é a consciência que dota o mundo de significado, estabelece relações e as justifica logo, o homem não está na posição de passividade recebendo uma moral externa, ele é criador de valores, estes não existem por si. Antes da ação concreta todos os motivos possuem a mesma carga indistinta e sem força, é o homem que seleciona qual valor ele deve seguir quando age.

A outra forma de solapar a liberdade é mais explicita, nela existe a reflexão anterior ou posterior à ação, e para justificá-la elevo um motivo ao patamar de determinante comportamental. A crença em um determinante comportamental é impossível, se a consciência é consciência de ponta a ponta, ela “sabe” da sua tentativa de forjar um determinismo logo, a crença se destrói ao tentar nascer. Uma crença que não pode existir pois esbarra nos limites da translucidez da consciência, é pois, uma atitude de má-fé. A má-fé não chega a crer no que almeja crer, isto é, em suas desculpas, porém insiste em se iludir com essa falsa crença. Estas atitudes geralmente são: tentar estabelecer necessidades, forjar determinismos como valores prontos, moral, contexto ou situação, e acreditar ter realizado o projeto de se tornar ser-em-si-para-si, fingir ter uma essência, uma personalidade. Porém mostramos que o homem é um nada de ser, seu passado não o determina e a qualquer momento ele pode ressignificar o mundo e seu projeto, é impossível que se torne identidade definida, um objeto.

 “Tendo definido a situação do homem como uma escolha livre, sem desculpas e sem auxílio, consideramos que todo homem que se refugia por trás da desculpa de suas paixões, todo homem que inventa um determinismo, é um homem de má-fé” (Sartre, 1987, P.19)


Sartre chama de “campeão da sinceridade” quem exige que o homem se reconheça pela unificação de seus comportamentos e se defina como tal[4] O “campeão da sinceridade” tenta reduzir sua liberdade a ser uma coisa ou objeto agarrando-se numa essência para justificar os seus atos, isto é precisamente a tentativa fracassada de se tornar ser-para-si-em-si. “O que o existencialista afirma é que o covarde se faz covarde, que o herói se faz herói; existe sempre, para o covarde, uma possibilidade de não mais ser covarde, e, para o herói de deixar de o ser.” (Sartre, 1987, p. 14) Não há como negar que o covarde se fez covarde; isso seria negar as responsabilidades dos próprios atos e agir de má-fé. Porém, como projeto aberto a possibilidades, tentar se definir num bloco denso e impenetrável também é agir de má-fé.

O homem pode continuamente forjar argumentos e desculpas para se justificar sobre o que poderia ter sido ou ter feito colocando-se como vítima das circunstâncias. Porém o fato não determina a resposta humana, sou livre para escolher o modo como lidarei com a realidade. Escolher refúgios ou a acomodação em determinismos é ainda uma atitude livre, pois a má-fé só é possível a partir da liberdade absoluta, isto é, porque o homem é nada de ser em seu ser que ele pode negar-se, por ser falta de “si” pode buscar o “si” que lhe daria completude e falsear uma essência.

A liberdade aqui não é um adereço, não é externa, não é um dom outorgado, ela é o ser do homem. O único limitante da liberdade é a própria liberdade pelo posicionamento de um fim. Não é o lugar por ele mesmo que se constitui como uma adversidade ou uma finalidade, muito menos é o fato que estabelece a forma que lidarei com ele[5]. “...os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem, não a fazem sob condições escolhidas por ele, mas pelas condições legadas pelo passado...”. (Marx, 2000, p. 224) Escolher-se é escolher-se dentro desse mundo. Significo o mundo de acordo com o meu projeto, escolho o que seria pra mim uma adversidade a ser modificada e o que seria uma finalidade a ser atingida, porém, estar aqui ou ali, viver desse ou daquele modo é contingente. É a consciência que dota o mundo de significado e estabelece relação entre os objetos e fatos, coerência lógica, motivos, justificativas...

Em seu romance “A náusea” percebe-se como o personagem principal Roquentin tenta forjar aventuras e tenta organizar a vida do Marquês de Rollebon, ambas tentativas frustradas e fracassadas. A personagem percebe que só depois de ocorridos os fatos é que a consciência pode alinhavá-los, dando-lhes o nome de aventura, numa série encadeada e coerente, antes as ações não tinham nenhuma necessidade causal. A tentativa de estabelecer uma relação causal na vida de Marquês de Rollebon é frustrada porque o homem é ser-para-si e há sempre uma fissura que o separa das coisas, um fato ou acontecimento pode se tornar um motivo, mas não pode determiná-lo a agir de certa maneira, é na ação que o homem determinará quais os motivos foram mais importantes. Não existe nenhum fim que se imponha nem na arte, nem na vida, como um imperativo ao homem.

A má-fé existe posto que o homem é nada de ser em seu ser, uma existência sem sentido ou necessidades, e a consciência reflexiva dessa condição ontológica, esta que nos deixa sozinhos, culpados e sem desculpas pelo que fizemos de nós, leva à angústia. Preferimos no entanto falsear nossa existência, forjar necessidades e justificativas para nossos atos. Esse falseamento é sempre um projeto fracassado, primeiro porque é impossível modificar a condição ontológica de indeterminação e falta de essência, e segundo porque a liberdade é a única possibilidade de ação, tentar sucateá-la é ainda uma escolha, mesmo que seja uma escolha de má-fé.

Se a má-fé é a tentativa de solapar a liberdade “é pela assunção dessa consciência de liberdade - isto é, pela sua consideração ao nível posicional- que realizamos a possível “fuga radical” da má-fé indicada por Sartre”.( Burdzinski, 1999, p. 53). Ora, a superação da má-fé se dará pelo reconhecimento de que cada escolha é absurda porque não tem nenhum fundamento ou necessidade, de que nossos projetos para adquirir completude serão fracassados e assim modificá-los para um “fazer-se a si mesmo, a cada instante”[6].





















Referências
O drama da existência: estudos sobre o pensamento de Sartre / organizado por Igor Silva Alves, Paola Gentile Jacobelis, Renato dos Santos Belo, Thana Mara de Souza. São Paulo: Humanitas / FFLCH/USP,2003
Marx, Karl, O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, in Marx-Engels, Obras Escolhidas, Rio de Janeiro, Vitória, 1956
SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, 18 ed, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2009
                   . Jean-Paul, A Náusea, 7 ed, Rio: Nova Fronteira, 1991.
                   . Seleção de textos. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os pensadores)
Burdzinski, Júlio César, Má-fé e autenticidade: um breve estudo acerca dos fundamentos ontológicos da má-fé na obra de Jean Paul Sartre. Ijuí, Rs: Ed. UNIJUI,1999



[1] A consciência não tem divisão nem interior. Isto porque não tenho um Eu que permanece, não tenho essência, nem personalidade. Esse suposto ego é uma síntese de inúmeras consciências, ou soma das unidades de estados psíquicos, e o que relaciona todas as vivências e experiências vividas no passado é a própria consciência. O Ego surge nesse ato de reflexão, porém não sobre a própria consciência, mas sobre o passado ou as vivências. No momento em que penso a mim mesmo me cristalizo como objeto e deixo de ser consciência. Alguém que tentasse encontrar a própria consciência se depararia com o nada.

[2]  A imaginação, a intuição sensível, e os sentimentos, são de atos intencionais, são externos e transcendentes, formas da consciência lidar com o mundo, logo esta não se reduz à percepção nem ao conhecimento. Amor ou ódio, por exemplo, são a unificação das consciências e estados psíquicos numa reflexão impura, esta acredita na existência de tais sentimentos para além do presente consciente e do passado.
[3] “Isto pode ser também ilustrado pela metáfora do espelho. Da mesma forma como uma imagem qualquer que distinguimos em um espelho é esse mesmo espelho – posto que a imagem é a imagem espelhada – e, simultaneamente, não é o espelho – visto que a imagem é apenas o reflexo de um objeto necessariamente exterior ao espelho - , assim também a consciência é e não é ela mesma.”( BURDZINSKI, 1999, p.57)
[4] “é preciso notar que toda “coerência” só o é em vista do que já foi; ou seja, a idéia de coerência nos remete ao passado, pois só podemos ser coerentes em virtude daquilo que fomos. Conseqüentemente, e em segundo lugar, a sinceridade será sim possível, mas apenas se nos retermos aos atos que já foram praticados, aquela pessoa que fomos ontem, por exemplo.” (Malcom Guimarães Rodrigues, Consciência e má-fé no jovem Sartre, 2007, p.91)
[5] A facticidade do para-si é o que torna a liberdade concreta pois o homem não pode ser pensado como fora do mundo como se pudesse estar separado da realidade. Ser intencionalidade é estar em situação, em relação com o mundoSartre mostra como até mesmo no imaginário não estamos completamente desvinculados do mundo, porque para imaginar algo eu nego o mundo e tomo consciência de um objeto irreal, porém o mundo se mantém como pano de fundo.  Como por exemplo ao olhar uma foto e esta serve como analogon que nos remete à imagem de algo, posso negar o mundo naquele instante e imaginar uma pessoa ou uma viagem, porém o mundo real permanece como pano de fundo.
[6] “Implica-se aqui, ainda, uma profunda modificação do projeto existencial: trata-se de abandonar um projeto existencial “que é sempre um projeto de ser-em-si” por um projeto de fazer. Somente pelo abandono definitivo do projeto do para-si em constituir-se como ser- projeto cujo fracasso é inevitável, pois é ontologicamente inrealizavel-, podemos criar condições tais para que a má-fé, em todas as suas formas e variações, possa ser superado.” (BURDZINSKI, 1999, p. 70)

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