terça-feira, 26 de outubro de 2010

"AS PAIXÕES DOS HOMENS NO ESTADO DE NATUREZA E CIVIL AS DUAS INTERPRETAÇÕES DE CONATUS" Luiz Ferreira da Silva


AS PAIXÕES DOS HOMENS NO ESTADO DE NATUREZA E CIVIL
AS DUAS INTERPRETAÇÕES DE CONATUS

Luiz Ferreira da Silva





RESUMO

Das características distintas da sociedade dos seres humanos, duas se destacam por constituírem o modo de vida de uns relacionados com os outros, ou seja, o modo pelo qual cada homem age na presença de cada homem no dia a dia, na busca pela sobrevivência e na preservação da própria vida. A primeira característica é a do homem no estado de natureza ou a do homem no estado natural no qual os homens vivem sem um poder comum capaz de mantê-los a todos em respeito; nesse estado os homens se encontram na condição de bellum omnia omnes (guerra de todos contra todos). A segunda característica é a do homem no estado civil, no qual o homem transfere o seu direito de governar a si mesmo ao soberano que toma o poder de controlar todas as paixões dos homens de modo a manter a paz e a segurança. O homem no estado natural é inclinado a procurar tudo àquilo que lhe apraz e refutar tudo aquilo que lhe pode causar danos, ou seja, ele faz um esforço constituído de desejo ou aversão e que é nomeado de “endeavour” ou “internal beginning” ou “Conatus”. O Conatus é a origem de todas as paixões e levam os homens no estado natural à guerra de todos contra todos e é também o sustentáculo para a fundamentação do conceito de homem no estado civil; o que é para o homem no estado natural uma contenda é a panacéia para a criação do estado civil.


Palavras chave: Estado natural, Estado civil, Endeavour, Internalo beginning, Conatus, Thomas Hobbes.










INTRODUÇÃO

O Pré-juízo ou o pré-conceito que se faz de um determinado fato ou de uma determinada coisa, dentro de um determinado contexto – como o contexto das sociedades dos seres humanos – possui alicerçado numa pertinência hermenêutica, dois modos de observação onde um é oposto ao outro. Similarmente, o Conatus – que é esse movimento constituído de desejo e aversão – é que provoca esses movimentos voluntários que persuadem o homem, ora procurar tudo aquilo que lhe promove o prazer, ora refutar tudo aquilo que lhe causa desprazer. É evidente que esses movimentos voluntários são precedidos de um pensamento de “como, onde e que”. Os pensamentos considerados isoladamente, cada um deles é apenas uma aparência de alguma qualidade de um corpo exterior que se denomina “objeto”. Essas aparências diversas denominam se “sensação”.

1 – DOS MOVIMENTOS VOLUNTÁRIOS.
      DA SENSAÇÃO.

A concepção que se tem da coisa corpórea procede da ação da própria coisa. A coisa – corpo exterior ou objeto – pressiona o órgão correspondente a cada sentido imediatamente, de modo que quando a ação é presente recebe também o nome de “sensação”. A sensação nada mais é do que a aparência ou ilusão provocada pelo movimento dos corpos exteriores, que afetam o sentido de visão numa luz ou cor, que afetam o sentido de audição num som, que afetam o sentido de olfato num cheiro, que afetam o sentido de paladar num sabor e afetam o sentido de tato em frio, calor, dureza, maciez e outras sensações.

    DA IMAGINAÇÃO.

A partir de uma determinada coisa corpórea – um objeto exterior – o seu movimento afetará um órgão de um determinado sentido no corpo, numa ação presente que é uma concepção denominada “sensação”. Quando esse determinado objeto exterior é desviado, ou seja, ele deixa de ser uma ação presente, ainda assim não cessará no cérebro o efeito por ele produzido. Embora a sensação seja passada a imagem ou concepção permanece, porém mais obscura quando estamos acordados e isso acontece porque outros objetos continuam dispostos solicitando os órgãos dos sentidos com um movimento mais forte. Esta concepção obscura é nomeada “fantasia” ou “imaginação”. Assim “a imaginação é a concepção remanescente e pouco a pouco esmaecida do e após o ato da sensação”. À sensação antiga e passada dá-se o nome de “memória”; e o acúmulo de memória ou a memória de muitas coisas dá-se o nome de “experiência”.

   DO DISCURSO DA LINGUA.

Para gerar o movimento da coisa corpórea basta apenas exercer a partida e isso ocorre porque ela, por ser constantemente movida de um mesmo modo, está apta com mais facilidade para um mesmo movimento, de tal modo que no tempo, um movimento é imediato ao outro de forma habitual. As paixões do homem – elas que são o exercício da partida de todos os movimentos voluntários – são também o embrião da fala, que nada mais é do que o movimento da língua. Portanto, para explicitar suas opiniões, concepções, paixões e conhecimento os homens inventaram a linguagem. A linguagem é a maneira pela qual os homens transferem toda discursão da mente – que é a sucessão de concepções causal ou ordenada – para o movimento de suas línguas, ou seja, para o discurso das palavras.

   DA CONDIÇÃO HUMANA FORA DA SOCIEDADE CIVIL.

São quatro as faculdades da natureza humana como segue:- a força corporal, a experiência, a razão e a paixão. Os homens dotados dessas faculdades são inclinados a se manifestarem de diversos modos uns com os outros, de modo que se pode estabelecer por qual delas, eles estão condicionados para a sociedade, ou seja, para se preservarem da violência recíproca; noutras palavras quais são as leis fundamentais da natureza. Os homens se reúnem e se deleitam uns com os outros por acidente e por isso, se um homem amasse outro homem “por natureza”, não há razão para que todo homem ame todo homem, sendo ele tão homem quanto o outro, e nem razão para que todo homem freqüente mais a companhia daqueles que lhes conferem vantagens. Portanto, todo homem procura a companhia de todo homem não naturalmente, mas para daquela companhia tirar algum proveito – ou da vã glória ou da miséria recíproca. “A origem das grandes e duradouras sociedades não deriva da boa vontade que uns têm com os outros, mas do medo recíproco que uns têm dos outros”.

POR NATUREZA, TODOS OS HOMENS SÃO IGUAIS.

Ao examinar o homem adulto e tomar consciência da fragilidade do seu corpo, não é difícil perceber que um homem fraco pode matar o mais forte e por isso não há razão para um determinado homem julgar-se por natureza mais forte que o outro. Todos os homens são naturalmente iguais entre si e todos eles têm a mútua vontade de se ferirem; essas são as causas do medo recíproco.

DE ONDE PROVÉM A VONTADE DE CAUSAR DANO A OUTREM.

Alguns homens conformam com a igualdade que vige entre eles e permitem para os outros, tudo aquilo que lhes são permitidos. Estes são os homens de pensamento temperado e avaliam corretamente os seus poderes. Outros homens, supondo superiores aos outros, exigirá muito mais para si daquilo que pensa serem devidos àqueles. Estes são os homens de espírito arrogante. Como no estado de natureza todos os homens têm o desejo de ferir, os primeiros homens ferem por necessidade de se defenderem; os outros homens ferem pela vã glória e pela falsa avaliação de seus poderes.

A COMPARAÇÃO DOS DESEJOS É A CAUSA DA DISCÓRDIA.

Se não se aprova o que um homem afirma é o mesmo que acusá-lo implicitamente naquilo que ele diz; discordar de um grande número de coisas é o mesmo que chamar de louco aquele de quem discorda. Isso é o combate entre os espíritos que é de todos o mais feroz.

O DESEJO QUE MUITOS TÊM PELA MESMA COISA.

Se um homem quer uma coisa qualquer, isso basta para que ela lhe pareça boa, e por ele pretender essa coisa já indica que ela contribui para a sua conservação. A natureza deu tudo a todos e por isso entende-se que no estado de natureza a medida do direito está na vantagem que for obtida.

O ESTADO DOS HOMENS FORA DA SOCIEDADE CIVIL É UM SIMPLES ESTADO DE GUERRA: DEFINIÇÃO DE GUERRA E PAZ.

Os homens são propensos a se ferirem uns aos outros, o que é derivado não só dos seus desejos e aversões, mas primeiramente da arrogância e da falsa avaliação que eles fazem de si mesmo. Mas os homens têm também por natureza o direito a tudo e por isso o homem, graças a esse direito invade o outro que, com o mesmo direito resiste. Destarte, ao adicionar esses dois fatos, surgem infinitos zelos e suspeitas. Portanto, é tarefa árdua de todo homem resguardar-se do inimigo que está sempre propenso a atacar. Pode-se afirmar o seguinte:- “O estado natural dos homens antes de ingressarem na vida social, não passava de um estado de guerra; e não uma guerra qualquer, mas uma guerra de todos contra todos”.

ESCLARECIMENTOS ACERCA DOS MOVIMENTOS VOLUNTÁRIOS.

Para explicitar e consequentemente justificar os movimentos voluntários, esclarecemos o seguinte:- A sensação é o movimento provocado por um objeto exterior nos órgãos dos sentidos do corpo humano, e a imaginação nada mais é do que um resíduo desse movimento que permanece depois da sensação. É notório que andar, falar, cheirar, tatear, ouvir, lutar e ferir outrem e outros movimentos voluntários é dependente de um pensamento anterior de “como”, “onde” e “que”; afirma-se que a imaginação é a primeira origem de todos os movimentos voluntários. Ainda que o objeto movido seja invisível, o espaço nunca é tão pequeno porque aquilo que é movido num espaço maior – do qual o espaço menor faz parte – começa a ser movido neste último. Estes ínfimos inícios de movimentos voluntários no interior do corpo humano, antes de se manifestarem no andar, no falar, no cheirar, no tatear, no ouvir, no lutar ou ferir outrem e outras ações visíveis, denomina-se esforço.  Quando o esforço vai encontro com aquilo que o causa, ele chama-se desejo ou apetite; quando o esforço vai ao sentido de evitar alguma coisa, ele se chama aversão. Portanto, denominamos esforço ou mais comumente paixões, esses inícios ínfimos de todos os movimentos voluntários e que tem sua origem na imaginação. “Esse movimento que consiste de prazer ou de dor é também uma solicitação ou provocação, seja para aproximar da coisa que deseja ou para afastar-se da coisa que lhe desagrada. E essa solicitação é o esforço (endeavour) ou o impulso interior (internal beginning) ou Conatus (1) do movimento animal, que é chamado apetite (appetite) quando o objeto deleita, e é de aversão (aversion) acerca do desprazer presente”.

2 – DO ESTADO.
DA NECESSIDADE E DEFINIÇÃO DE ESTADO.

Os castigos e recompensas não só derivam das ações, mas são a causa que produz e governa a vontade para elas, e como no estado de natureza todos os homens são iguais, segue que todo homem tem o direito de ser o próprio juiz. Quando algum homem movido pela paixão natural é inclinado a violar alguma lei da natureza, não há noutro a segurança de sua própria defesa e a de seus pertences senão por antecipação.

Seja um grande agrupamento de homens que pleiteiam a sua defesa mútua; a empreitada só se conclui se as ações propostas forem para o mesmo fim. Esta proposta para um único e mesmo fim nomeia-se “concórdia” ou “consenso”. Apesar do consenso, é impossível estabelecer a paz completa, sem que haja um medo mútuo porque, mesmo que as ações sejam para o mesmo fim, ainda permanece a diversidade de paixões entre eles.

Entende-se por concórdia ou consenso, o pleito de vontade de muitos homens para uma e única ação que resultará numa convergência para a paz. Isto não é suficiente para a paz comum; é necessário estabelecer antes um “poder comum” que promova o temor entre eles, equilibre suas paixões e os force a manter a paz reunindo forças contra o inimigo comum. O poder comum pode ser definido como o envolvimento da vontade de muitos na vontade de um e único homem ou de um e único conselho de homens.

Da união resulta que todo homem, por convenção, obrigue a si mesmo a um e único homem ou a um e único conselho de homens, de quem serão determinados a fazerem todas as ações que aquele homem ou aquele conselho ordenar. Esta união é o que é nomeado de “corpo político” e que os gregos chamaram de “polis”. O homem ou o conselho que assume o poder é chamado de soberano e o seu poder é o poder soberano. Os demais que transferiram o poder são chamados de súditos.

A empreitada dos homens na busca de uma causa final – que no estado natural vivem em guerra de uns com os outros – restringindo a si mesmos, é o cuidado com a sua conservação e uma vida mais satisfeita, ou seja, sair daquela mísera e curta vida na condição de guerra, que é a conseqüência de todas as paixões naturais dos homens.

A justiça, a eqüidade, a modéstia, a piedade, a humildade e outras leis naturais, ou seja, fazer aos outros tudo que queremos que nos façam, são por si mesmas, na ausência de um poder temeroso, contrárias às nossas paixões naturais que nos inclinam para o orgulho, a vingança e outras coisas semelhantes.

Para defender a comunidade de invasores estrangeiros, livrá-la das injúrias dos próprios comunheiros, para garantir uma segurança suficiente para que seus membros possam com o próprio trabalho viverem satisfeitos, é conferir toda força e poder a um homem ou a uma assembléia, para que possam controlar as diversas paixões. Assim cada homem faz um pacto com todos os outros homens como se cada homem dissesse a cada homem:- “Cedo o meu direito de governar a mim mesmo a este homem ou a esta assembléia”. Esta é a geração do grande deus mortal que devemos, abaixo de Deus imortal, nossa paz e defesa para uma vida mais satisfeita e que Thomas Hobbes nomeia de “Leviatã”.

3 – CONCLUSÃO.

Dos vários métodos que a ciência utiliza talvez os da arqueologia dê conta de explicitar que mesmo nas sociedades mais primitivas já havia indícios de certa organização e hierarquia entre os habitantes de uma determinada região. Portanto, confirmar um estado de natureza perfeito tal como propôs Hobbes, não é muito prudente.

O que se observa é que para a necessidade e a definição do corpo político (estado) tal como propôs Hobbes vem - no contexto da historicidade das sociedades humanas – apenas corroborar para a ampliação e aperfeiçoamento de tal conceito desde a época dos gregos.

Ora, o que ainda se observa é que o estado de natureza – aquele em que os homens vivem em estado de guerra de todos contra todos – é derivado daqueles movimentos voluntários, ou seja, pela falta de controle das paixões dos homens. Concorda-se que a inexistência desses movimentos voluntários que Hobbes nomeia Conatus é também a inexistência daquele estado de natureza. Pode-se afirmar que esses movimentos voluntários são, não só uma contenda entre os homens, mas uma justificativa para a teoria do estado natural do homem.

Apesar de defender com veemência o absolutismo, a teoria do Estado de Hobbes estabeleceu um avanço louvável nas relações humanas que até hoje reflete nos estados modernos. Mas o homem no estado natural ainda existe; basta observar os crimes e barbáries que acontecem até hoje nos estados onde não existe um poder consolidado e forte. Concorda-se que as paixões dos homens não foram banidas, mas controladas. Pressupõe-se que esses movimentos voluntários, ou seja, as paixões que Hobbes nomeia Conatus seja não só o embrião mas o sustentáculo da teoria do estado, ou seja, o sustentáculo para a fundamentação do conceito de homem no estado civil.



BIBLIOGRAFIA.

HOBBES, Thomas. Do cidadão. Primeira parte: Liberdade. Capítulo I, nºs 2, 3, 4, 5, 6 e 12. Martins Fontes, São Paulo 1992.

HOBBES, Thomas. Leviatã. Primeira parte: A respeito do homem, nºs 2 e 6. Martin Claret, São Paulo 2007.

HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Primeira parte: Capítulo III nº 1. Capítulo IV nº 1 e 14. Capítulo VII nº 2

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