terça-feira, 26 de outubro de 2010

" UMA LEITURA DO SER HEIDEGGERIANO À LUZ DE 'A MORTE DE IVAN ILITCH DE LEON TOLSTOI'” Matheus Moreira de Miranda


 UMA LEITURA DO SER HEIDEGGERIANO À LUZ DE “A MORTE DE IVAN ILITCH DE LEON TOLSTOI”

Matheus Moreira de Miranda


O propósito desse trabalho é reler a história do personagem Ivan Ilitch a partir da noção do Ser heidegeriano. Muito além da simples saga de um personagem do século XVIII que se envolve socialmente nos compromissos e vaidades de seu tempo, Tolstoi, ao nosso entender, expõe sobrepostamente no romance, evidentes semelhanças com o filosofo alemão, no tocante à compreensão do Ser.

Se de acordo com Heidegger “A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os pensadores e poetas lhe servem de vigias” (1967:24), atentaremos especialmente para a maneira como Tolstoi utiliza, através do seu personagem, o recurso da linguagem a fim de que Ivan Ilitch possa reconciliar-se consigo mesmo, e entender que sua vida não passa de um esquecimento de si. Ivan Ilitch ao ser conduzido pelo pensamento-linguagem possibilitará a si mesmo a plenificação do Ser que será, por fim, trazido à fala.

Não desejamos nesse trabalho comprovar a consciência do escritor russo a esse respeito, pois nosso anseio não é psicologizar este ensaio. Queremos apenas aprofundar o entendimento sobre o romance a partir de uma perspectiva dentre as muitas possíveis. Acreditamos que, ao buscarmos o aprofundamento do entendimento sobre a obra literária, vislumbraremos a possibilidade da extensão de sua leitura, considerando ser possível viver um deslocamento existencial próprio àquele que envereda por esses caminhos.

***

O livro “A morte de Ivan Ilitch” nos leva a perceber que o processo da essencialização do Ser é latente no personagem desde o início do romance. No entanto, embora o elemento essencial fosse inerente à Ilitch, o processo de desvelamento ocorreu de forma silenciosa e gradual. No começo da história o personagem dedicava suas ações e atitudes exclusivamente às suas realizações sociais e profissionais, descuidando-se por completo de si. Suas atenções estavam voltadas para ascensão profissional e orgulho social, o que lhe ocupava todo o tempo. Então, a partir de um sutil incomodo em sua saúde é que a trajetória de Ivan Ilitch se desdobra em direção ao Ser. Nesse momento o romance ganha cor e consistência filosófica.

No início do texto “Carta sobre o humanismo”, Martin Heidegger explora a questão da Essência do agir, pensando a ação não como meio de produzir um objeto útil separado de quem o produz, mas como o caminho em que conduzimos “a coisa”, a partir de sua  Essência em que vigora, uma força a se plenificar na realização daquilo que já é. “A Essência do agir, no entanto, está em con-sumar. Con-sumar quer dizer conduzir uma coisa ao sumo, à plenitude de sua Essência. Levá-la a essa plenitude, producere” (1967:24).

Todas as ações de Ivan Ilitch, no início do romance, eram dirigidas para um fim externo a ele, não plenificando a Essência de sua ação. Sua preocupação estava voltada para a utilidade daquilo que era desejado. Orientado pelo orgulho e pela vaidade social, o personagem buscava em seus projetos engrandecer e justificar ainda mais seu prestígio, sustentando-o através da ostentação de seus méritos para a finalidade social a que ele se empenhava. Ilitch, no sentido heideggeriano, separava-se da ação ao realizar tudo aquilo que não lhe era próprio e sim tudo aquilo que a sociedade dele esperava.

Ivan Ilitch, no decurso do romance, é afetado por um mal de saúde. Uma intermitente dor abdominal seguida de um gosto amargo em sua boca, que o leva enfim a atentar mais para si. Nesse período de desconforto e inquietação, a personagem começa a pensar sobre os motivos que trouxeram a incômoda dor que o acometia. Essa época adversa foi propícia para criar o seu referencial de conhecimento, pois, sua condição de saúde era um inconveniente para seus convivas, que acabaram por abandoná-lo a sua sorte. Na “solidão solitária” seu pensamento direcionou-se para o Ser, tornando-se linguagem:

O pensamento age enquanto pensa. Seu agir é de certo o que há de mais simples e elevado por afetar a re-ferência do Ser ao homem. Toda produção se funda no Ser e se dirige ao ente. O pensamento ao contrário se deixa requisitar pelo Ser a fim de proferir-lhe a verdade.[1]

Foi através do pensamento tornado linguagem, que Ivan Ilitch pôde no decorrer do livro trazer o Ser à fala, para que pudesse haver uma compreensão entre ele e os acontecimentos no mundo. Ao engajar-se no pensamento em busca do seu desvelamento podemos identificar esse processo com aquilo que Heidegger chama de aproximação do seu elemento.

O elemento é aquilo a partir do qual o pensamento pode ser pensamento. O elemento é o propriamente poderoso: o poder. Ele se apega ao pensamento e assim o conduz á sua Essência. Dito sem rodeios, o pensamento é o pensamento do Ser. [2]

No decurso temporal e histórico do romance Ivan Ilitch pôde, através do pensamento, conhecer o Ser, pois “o pensamento é de acordo com a pró-veniência de sua Essência” (HEIDEGGER, 1967:29).

Se o pensamento pertence ao Ser e com isso viabiliza o conhecimento do próprio Ser, todo o percurso de desvelamento que passa o personagem pode ser entendido, em Heidegger, como o início histórico da vida de Ivan Ilitch. A plenificação do Ser sempre está por vir; este sentido histórico “por vir” pode ser interpretado como o resgate de uma physis con-sumada por Ivan Ilitch ao final do romance. Alain Badiou, no livro “Ser e o evento”, destaca a importância do termo physis para as ontologias poéticas. Esta palavra que designa natureza é fundamental, pois:

(...) designa a vocação de Presença do Ser (...) A natureza não é uma região do Ser mesmo, um registro do ente-em-totalidade. Ela é o aparecer do Ser mesmo, o ad-vir de sua presença, ou ainda a “estância do Ser”. [3]

 Quando Ivan Ilitch inicia sua trajetória em busca do desvelamento do Ser, não há mais como retroceder. O caminho dessa plenificação é irresistível, pois a força de um querer Essencial, que nos é própria, nos impulsiona para o Ser. Para Heidegger:

O poder do querer é aquilo em cuja “força” uma coisa pode propriamente Ser. Esse poder é o “possível” em sentido próprio, a saber, aquilo cuja Essência se funda no querer. É por esse querer que o Ser pode pensar. O Ser possibilita o pensar. Querer poderoso, o Ser é o “possível”. Como o elemento, o Ser é “a força silenciosa” do poder que quer, isto é, do possível. [4]

Nesse processo de desvelamento histórico do Ser empreendido por Ivan Ilitch podemos observar traços de uma querela filosófica entre a concepção da physis: no entendimento heideggeriano e paralelamente, no entendimento platônico sobre a questão da idéia. Ainda, segundo Badiou, o conceito de Idéia em Platão só pode ser compreendido a partir da concepção grega da natureza. Badiou interpreta a idéia não como uma negação da natureza, mas como uma materialização da própria idéia:

Ela acaba o pensamento grego do Ser como aparecer, ela é “o acabamento do começo”. Pois o que é a Idéia? É o lado evidente do que é oferecido, é a “superfície”, a “fachada”, a oferta ao olhar do que desabrocha como natureza. É sempre, de fato, o aparecer como ser auroral do Ser, mas na limitação, no recorte, de uma visibilidade para nós. [5]


Não vamos aprofundar nessa querela. Porém, devemos ressaltar os aspectos relevantes desse recorte. Se Ivan Ilitch, no início do romance, se encontrava fora da trajetória do Ser e se empenhava em realizar-se como pessoa através de desejos sociais comuns  dentro da perspectiva de idéia, ao final do romance, ele constata sua decadência a partir da má compreensão que tinha do mundo. Portanto, enquanto a personagem se empenhava em alcançar o ideal perfeito de realização estava posta a ruptura entre o aparecimento e o Ser do aparecimento, caracterizando segundo Badiou “a perda, de tudo o que há de presença, de não latência na apresentação”. E mais: “não é que a physis tenha sido caracterizada como Idéia; é que a idéia se instala como a interpretação única e determinada do Ser” (BADIOU, 1996:105).

Especificamente no romance de Tolstoi o fato do personagem Ivan Ilitch perceber que o ideal buscado por ele, a partir de perspectivas tradicionais sociais, fez com que ele entendesse Essencialmente que, só haveria realização ou plenificação do Ser, a partir de uma ruptura desse projeto. Foi com o início de seu mal de saúde que a Essencialização do seu pensamento lhe possibilitou trazer o Ser à fala, levando por fim o Ser a con-sumar aquilo que é.

Faz-se necessário que o homem tome consciência de si como sujeito social, histórico e cultural em vias de construção, abrindo mão da linguagem determinista que leva o homem a ser, antes de tudo, um consumista em potencial, esquecendo suas essências vitais para a sua construção. O resgate do Ser leva o homem à busca de realizações “originárias” concernentes a si, colocando-se como personagem principal de sua vida, sendo o Outro e a natureza necessários a esse aprimoramento para a sua habitação no mundo.























ANEXO

“O CONVALESCENTE”



A proposta desse trabalho é interpretar a obra do autor russo Leon Tolstoi intitulada “A morte de Ivan Ilitch” à luz do texto “O convalescente” de Martin Heidegger contido no livro Nietzsche I que trata do pensamento do eterno retorno do mesmo. Especificamente queremos identificar o caráter convalescente do personagem Ivan Ilitch sob a perspectiva filosófica interpretada por Heidegger sobre o texto nietzscheano, para que enfim, possamos compreender a ascensão do personagem de Tolstoi em direção ao pensamento libertador, que o fará compreender a sua história a partir do desvelamento de sua real condição de vida. Entendemos que, paralelamente, a história metafórica de Zaratustra ilustra de maneira fiel a trajetória dolorosa com que Ivan Ilitch alcança a luz da imagem sensível que expõe toda a eternidade do drama vivido por ele. Em seus últimos dias de vida, seguindo em direção à morte, confrontando sua penúria com as mais duras questões por ele vividas, Ivan Ilitch solucionou o “enigma” que tanto o incomodara. Mas foi preciso estar só em sua solidão solitária para entender a necessidade das dores da vida, que tanto ele se empenhava em suavizar. Ao assumir a necessidade da dor Ilitch encontrou a felicidade arrebatadora que o confortou instantes antes de seu fim.

Portanto, abordaremos a questão da convalescença do personagem de maneira imediata para que possamos desenvolver mais intensamente o tema. Ao assim procedermos contaremos a história, de certa maneira, de trás para frente, o que causará naquele que não leu o romance um certo estranhamento. Entretanto, dessa maneira acreditamos poder alcançar no final desse artigo a conformação entre o texto filosófico e a obra literária.

***


Para Ivan Ilitch o exercício de suas funções profissionais e sociais proporcionava um prazer exclusivamente voltado para seu amor próprio. Os acontecimentos eram vividos sempre de uma maneira suave. Nunca se atentou em pensar a maneira como as coisas chegavam até ele. As ocasiões desagradáveis da vida, fruto de suas próprias escolhas, eram sempre contornadas através de subterfúgios que o preservavam de pensar os motivos pelos quais os problemas lhe apareciam. Tudo corria muito bem. Mas essa furtividade com que Ivan lidava com a vida logo precisou ser, primeiramente, observada de uma outra maneira, para que no final de sua história ela pudesse ser pensada e entendida em sua real condição. Não que pensar fosse uma coisa fácil para Ilitch. Enquanto estava absorto em manter um padrão de vida condizente com o circulo das relações com quem convivia, não percebeu os primeiros sinais de que sua saúde não ia bem. O gosto estranho que surgiu em sua boca seguida de um incômodo mal-estar do lado esquerdo do ventre, não foram suficientes para Ivan Ilitch pensar como sua vida tinha corrido até aquele momento. Aparentemente bem sucedido, mas a todo instante dando mostras de um profundo fracasso humano na qualidade das relações em família. Mas a natureza lhe deu sinais sutis, a partir do corpo para que algo pudesse ser repensado e entendido. Entendemos que de acordo com a filosofia nietzscheana, os primeiros sinais que o organismo nos fornece, no que diz respeito à má conservação da vida, estão ligadas às sensações dolorosas que o corpo se propõe a expurgar. Se para Nietzsche a vida é dor, o aspecto fisiológico com que o filósofo procura interpretar a saúde, é muito importante para entendermos a não-compreensão que Ilitch tinha de si e da real aparência das coisas. Entender a saúde de maneira fisiológica requer a necessidade de trazer o que se mostra à fala compreendendo a conjuntura para assim conhece-la.

A saúde física de Ivan Ilitch se esgotava a olhos vistos. Constatou sua decrepitude em um relance de olhares com seu cunhado. Pôs em frente ao espelho e reconheceu, comparando-se com uma antiga foto, que havia mudado muito. Todos os seus convivas percebiam o que estava acontecendo, mas também se esforçavam para não enxergar a situação pelo viés assustador. Mas Ivan percebia as duas situações e se sentia desprezado pelos seus e principalmente, se ressentia da indiferença de sua própria família. Buscava então respostas ao seu problema junto à ciência. Em meio a inúmeras prescrições médicas voltadas para a solução do seu problema à partir da hipótese de que seu apêndice ou rim fossem os possíveis causadores de sua má saúde, as exortações da esposa para que ele tomasse os remédios e seguisse as recomendações médicas, já não faziam mais sentido para Ivan Ilitch em meio a solidão em que se via. Elas soavam como nos diz Heidegger no texto sobre o eterno retorno na página 237:

 “No entanto, depois de tal solidão, o mundo se mostra como um jardim mesmo onde irrompe um falatório e onde não se experimenta senão um mero jogo de palavras e de frases feitas. Ele sabe que uma amenidade serena e um certo tom de divertimento vêm recobrir o terrível que o ente propriamente é. Esse caráter terrível pode se esconder por trás da aparência do que é falado”[6].

Toda essa situação vivida pelo protagonista parecia de fato um mero falatório de frases ditas por especialistas que não tinham noção da real dimensão do problema enfrentado por Ilitch. De certo modo até mesmo o personagem sabia que a solução para sua saúde não estava nas receitas médicas ou em qualquer outra recomendação exterior. Faltava a Ivan Ilitch gritar, como fez Zaratustra logo depois de seu retorno da viagem que fez ao mar aberto e “inexplorado” para que o pensamento mais pesado acordasse e se desvencilhasse dos refúgios buscados para o não enfrentamento da dor. Mas o período em que antecedeu a sua morte, Ivan Ilitch relutava a todo instante em enfrentar frente a frente a fisionomia de sua morte dolorosa, buscando colocar-se de lado diante do enigma de sua vida ao invés de enfrenta-lo de uma vez. Ele adiava o confronto. Queria que sentissem compaixão de sua má sorte. Mas essa mentira que reinava a sua volta envenenava os poucos dias que lhe restavam.

No curso de sua história Ivan Ilitch vê-se, aos poucos, confrontado com as evidências de sua condição. Certa noite em que reconhecia-se definitivamente só, pôs-se a chorar suas dificuldades, a crueldade dos homens e de Deus, principalmente este que o havia abandonado. Mas de súbito parou de chorar. Pôs-se então a ouvir uma voz silenciosa, “a voz de sua alma, o desenrolar dos pensamentos que subiam de dentro dele”[7]. Nesse momento, enfim, Ivan Ilitch colocou-se de frente diante do seu enigma de vida. De acordo com a interpretação heideggeriana a respeito da maneira como se alcança o pensamento do eterno retorno, faz-se necessário ir ao encontro desse conhecimento verdadeiro desvinculado de todo sentimento de compaixão. Para Heidegger:

“Toda compaixão sempre acaba por se manter também apenas na periferia e por se colocar de lado: sua participação só consegue promover uma única coisa: amesquinhamento e falsificação do sofrimento por meio de pequenos consolos, assim como o impedimento e retardo do conhecimento verdadeiro. A compaixão não sabe nada sobre em que medida o sofrimento e o pior dos males que sufocam e se arrastam até o fundo da garganta, obrigando a gritar, “são necessários” ao homem “para que ele alcance o seu melhor”. Precisamente esse saber que sufoca precisa ser sabido se o ente na totalidade tiver de ser pensado”.[8]


Ivan Ilitch deixou o clamor pela compaixão alheia e começou a indagar-se através das profundezas de sua alma:

“De que necessitas tu?” Tal foi a primeira idéia clara, capaz de ser expressa em palavras, por ele ouvida. “De que necessitas tu? De que necessitas?” – repetiu ele. “De que?” – “De não sofrer. De viver!”, respondeu.[9]

O diálogo continuou entre Ilitch e sua consciência. Em sua imersão diante do arrebatamento que o aclamava sentiu “...todo o seu ser dominado por uma tal tensão, que a própria dor não conseguiu distraí-lo”.[10] Ao ser questionado pela voz de sua alma se de fato queria viver e de que maneira em que ele, Ivan Ilitch gostaria de viver, respondeu: “Sim, viver como eu vivia antes: agradavelmente, facilmente.”[11] Nesse momento então, pôs-se a pensar toda a sua história, todo o seu passado esquecido e ignorado. Buscou então em si mesmo o que seria viver agradavelmente, mas acabou se surpreendendo em meio a clareza da decepção.

“E começou a passar em revista na imaginação os instantes melhores de sua agradável existência. Mas – coisa estranha! – esses instantes tomavam aos seus olhos um aspecto inteiramente diverso do que outrora possuíam. Todos, à exceção de suas primeiras lembranças de sua infância. Houvera na sua infância algo verdadeiramente belo que o teria ajudado a viver agora, se lhe fosse possível ressucitá-lo”.[12]


Esse resgate do passado feito por Ivan Ilitch para resignificar a sua condição ilustra de maneira análoga a maneira com que Zaratustra inquiriu o anão para que este observasse o portal, não através das ruas (passado e futuro) mas sim a partir do instante. Entendemos que Ivan Ilicth colocou-se diante do seu portal de uma maneira representativa, onde a imagem do portal é o próprio agente da ação representando um ser de possibilidades, sendo que a possibilidade do acontecimento se figura no “entre” conciliando o resgate e afirmação do passado e a compreensão de seu futuro presente. Esse momento se dá de acordo com Heidegger:

“...para aquele que não permanece um espectador, para aquele que é antes ele mesmo o instante que age e se projeta para o futuro e que aí não seixa cair o passado, mas muito mais o acolhe e afirma. Quem se acha no instante está voltado para as duas vias: para ele, o passado e o futuro correm um contra o outro”.[13]

A real compreensão produz em Ivan Ilitch uma espécie de clarividência dos acontecimentos que ocorreram ao longo de sua vida. Começou recordando da época em que era universitário, admitindo viver ainda uma sincera alegria naquele tempo. Na medida em que ia aprofundando o resgate de seu passado foi percebendo que a alegria ia escasseando na mesma proporção que ia alcançando altos cargos públicos, prestígio e finalmente, depois do advento de seu casamento.

“Nem bem começava aquela série de acontecimentos que tinham finalmente redundado no Ivan Ilitch atual, todas as alegrias que ele vivera, que então lhe apareciam como tais, dissipavam-se diante de seus olhos e transformava-se em algo mesquinho e até mesmo vil”.[14]

Todo esse pensamento trouxe diante dos olhos de Ivan Ilitch a luz arrebatadora do instante. Heidegger define bem esse evento:

“...o que retorna – quando retorna – é decidido pelo instante e pela força de dominação das coisas contraditórias que nele se chocam. Isso é o que há de mais pesado e o que há de próprio à doutrina do eterno retorno, que a eternidade esteja no instante, que o instante não seja o agora fugaz, que não seja um momento apenas escorregando e passando ao largo de um certo espectador, mas sim a colisão de futuro e passado. Nessa colisão, o instante vem até si mesmo. Ele determina como tudo retorna”.[15]

Inserido nesse turbilhão de significações Ivan Ilitch alcança a percepção fundamental das imagens sensíveis que lhe advinham.

“Era como se eu descesse uma ladeira, supondo que eu tivesse a subi-la. E, de fato, perante a opinião pública eu subia, mas na realidade deslizava declive abaixo, a vida me escapava...E aí está! Tudo se acabou. Morre agora!”[16]

A força com que esse pensamento lhe chegava era assustadora, mas diferentemente da dor física que o consumia agora a dor sensível da aparência expurgava de seu corpo todo o veneno que o cegava ao longo de sua vida. O debate consigo mesmo alternava instantes de lucidez pura e delírio hesitante.

“Talvez eu não tenha vivido como devia – pensou – Mas não é possível, pois sempre fiz o que era preciso fazer”. E afastava logo, como inconcebível a única solução de todo o enigma da vida e da morte” (grifo nosso).[17]

Tomado pelo pensamento avassalador, Ivan Ilitch para de chorar as sensações e ainda “voltado para a parede” começa a questionar o por quê de todo aquele terror. Ele não sabia, mas tinha acabado de se tornar um herói de sua história, segundo o entendimento nietzscheano: “Ir ao mesmo tempo ao encontro de seu mais elevado sofrimento e de sua suprema esperança. {...} Em torno dos heróis tudo se transforma em tragédia.”[18]
O destino de Ivan Ilitch agora estava claro diante de seus olhos. Por fim, entendeu que todo o seu sofrimento “provinha do fato de não ter vivido como devia” e a idéia da morte adquiriu, no contínuo diálogo com sua consciência, um aspecto terrivelmente necessário.

“O que será isto, afinal? Será realmente a morte?” E a voz interior respondia: - “Sim, é a morte”. – “Mas por que estes sofrimentos?” E a voz lhe respondia: - “É assim mesmo! Por nada!” [19]

Todo esse período vivido por Ilitch, que podemos considerar de certa maneira catártico, foi dedicado a viver o seu passado que tanto ele insistia, ou se descuidava, em não pensa-lo. Mas a intensidade do instante vivido por ele é, segundo Heidegger, a visão do véu do devir.

“O véu do devir é o retorno como a verdade sobre o ente na totalidade, e o sol do meio-dia é o instante da sombra mais curta, a claridade maximamente clara, a imagem sensível da eternidade. No que “o peso mais pesado” é absorvido na existência: “Incipit tragoedia” (página 245).

Depois de todo esse processo doloroso de resignificação de sua história, onde todas as mentiras que havia se proposto a sustentar passaram a ser insustentáveis, reconheceu na fisionomia dos seus parentes e convivas próximos, em cada gesto e palavras por eles realizados que “lhe confirmavam a horrível verdade que se lhe havia revelado naquela noite”. Em seus últimos dias de vida Ivan Ilitch gritava muito, numa mistura de pavor perante a certeza de que sua morte se aproximava a cada segundo que se passava e de conformação diante das imagens esclarecedoras surgidas a partir do diálogo estabelecido entre ele e sua alma. Esse processo final se assemelha muito com o momento em que Zaratustra é tomado pelo pensamento mais pesado terminando por dizer: “Curai-me!”

Aos poucos Ivan Ilitch sentiu “com toda clareza” que sua dor opressora ia se dissipando, sendo expurgada para fora do corpo. “Como isto é bom e como é simples!” Por fim aceito o seu destino “procurou o seu costumeiro terror da morte” e não se incomodou, pois agora no lugar da morte ele viu a luz. “Tudo isso para ele produziu-se num instante, e a significação desse instante não mudou mais”. Enfim a morte deixou de existir. Ivan Ilitch em sua assunção heróica alcançou também sua máxima sabedoria da mesma maneira com que Zaratustra chegou até ela:

“Ele superou mesmo o repulsivo e o mau, no que aprendeu que o abismo pertence à altura. A superação do mal não é o seu alijamento, mas o reconhecimento de sua necessidade”.[20]


Entendemos que, ao final do livro de Tolstoi, consolida-se o ciclo ascensional de Ivan Ilitch rumo à concretização sensível de seu pensamento de uma maneira muito similar a que Nietzsche relata a respeito do processo para se chegar ao pensamento do eterno retorno do mesmo. O quarto e último capítulo da terceira parte de Assim falou Zaratustra é intitulado “O convalescente.” Inicialmente, o texto estabelece a concretização sensível das duas características essenciais do pensamento do eterno retorno do mesmo – altivez e astúcia. Essas características são fundamentais para Zaratustra pensar a vida, a dor e o sofrimento em uma unidade compertencente ao ente na totalidade. Esses três aspectos são trazidos à luz da evidenciação por intermédio do pensamento que desvela a verdade. Sendo assim, acreditamos que Ivan Ilitch alcançou a altivez e astúcia referentes ao seu próprio pensamento, ao esgotar ainda em vida todos os esforços para compreender sua condição. O personagem conseguiu unificar o processo em que vida, dor e círculo puderam ser pensados em sua unidade própria. Mesmo o acontecimento mais terrível que poderia o afligir – a morte – perdeu toda a face assustadora no momento em que Ilitch compreendeu que para se ganhar algo é necessário reconhecer que também se perde.

Conclusão

A compreensão do romance de Leon Tolstoi através da perspectiva filosófica de Nietzsche e Heidegger me proporcionou uma boa visão da condição em que o homem moderno está inserido. Pude me ver em muitos momentos ao longo da leitura do romance assim como na complementação que o texto filosófico me deu para as imagens que em mim surgiam e se afirmavam. Sinto-me melhor depois desse estudo, mas não menos condenado aos enganos a que esteve sujeito Ivan Ilitch.




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BIBLIOGRAFIA

TOLSTÓI, Leon. A morte de Ivan Ilitch: Editora Martin Claret, 2005.

HEIDEGGER, Martin. Nietzsche I – Rio de Janeiro: Forense universitária, 2007.

HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1967. 106p.

BADIOU, Alain. O ser e o evento. Rio de Janeiro: J. Zahar: UFRJ. 1996. 402p



[1] HEIDEGGER, 1967:25.
[2] Idem, página 28.
[3] BADIOU, Alain: Ser e o evento. Jorge Zahar. Ed. UFRJ. 1996. Página 105.
[4] Carta sobre o humanismo: página 30.
[5] Ser e o evento: página 106.
[6] Heidegger, Martin, Nietzsche I – O eterno retorno do mesmo.
[7] Tolstoi, Leon. A morte de Ivan Ilitch, página 70.
[8] Ibidem, Heidegger.
[9] Ibidem, Tolstói.
[10] Ibidem, Tolstói.
[11] Ibidem, Tolstoi.
[12] Ibidem, Tolstói.
[13] Ibidem, Heidegger.
[14] Ibidem, Tolstoi.
[15] Ibidem, Heidegger.
[16] Ibidem, Tolstoi.
[17] Ibidem, Tolstoi página 71.
[18]Segundo Nietzsche (apud Heidegger, página 244 ).
[19] Ibidem, Tolstoi.
[20] Ibidem, Heidegger.

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