terça-feira, 26 de outubro de 2010

"A NOÇÃO DE IMAGEM NA LINHA DIVIDIDA" Rafael Ferreira Tardin da Silva

A NOÇÃO DE IMAGEM NA LINHA DIVIDIDA

Rafael Ferreira Tardin da Silva



Resumo: O presente estudo tem como pretensão investigar a noção de imagem contida na Linha Dividida no Livro VI da República. Tal projeto pretende pensar o modo como a imagem é abordada em meio ao processo cognitivo descrito na Linha Dividida.  A pretensão encontrada aqui seria a de desenvolver um argumento que possa descrever como a imagem se apresenta como parte inserida no processo cognoscível da alma, tendo como referencia momentos importantes do diálogo que perpassam a temática da busca pela definição de justiça. No decorrer do estudo, a distinção realizada no final do Livro V entre Conhecimento (episteme) e Opinião (doxa) emerge como fundamental para o entendimento acerca do modo como o movimento ontológico se dá partindo do sensível para o inteligível. Tal distinção pode ser considerada como um marco dentro da República, pois o direcionamento tomado a partir desse instante tem como foco a formação do filósofo e não mais a do guardião. Desse modo, a compreensão sobre a distinção entre doxa e episteme torna-se necessária para uma melhor interpretação a respeito de como o processo epistemológico é apresentado na Linha Dividida.

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A proposta deste estudo é pensar sobre a imagem da Linha Dividida, contida no Livro VI da República, cuja importância se dá mediante sua representação acerca da teoria epistemológica de Platão. Em meio ao diálogo, é possível perceber a presença de inúmeras passagens que trazem consigo a imagem como elemento permeador do discurso socrático. Tendo como objetivo traçar uma análise sobre as imagens em meio ao processo cognoscível, é importante adotar um olhar mais cuidadoso sobre tais passagens a fim de que uma melhor compreensão possa ser desenvolvida.

No decorrer do estudo, a distinção realizada no final do Livro V entre Conhecimento (episteme) e Opinião (doxa) emerge como fundamental para o entendimento acerca do modo como o movimento ontológico se dá partindo do sensível para o inteligível. Tal distinção pode ser considerada como um marco dentro da República, pois o direcionamento tomado a partir desse instante tem como foco a formação do filósofo e não mais a do guardião. Desse modo, a compreensão sobre a distinção entre doxa e episteme torna-se necessária para uma melhor interpretação a respeito de como o processo epistemológico é apresentado na Linha Dividida.

Diante de tal proposta, é possível adotar como ponto de partida o livro II, onde a questão envolvendo a justiça é posta como objeto de reflexão de Sócrates e seus interlocutores. Nessa passagem, Glauco faz uma breve apresentação do que seria comumente aceito pela maioria dos indivíduos acerca da justiça e da injustiça. Sob esse aspecto, ele afirma que aqueles que a praticam não o fazem voluntariamente, mas porque a consideram algo necessário e não um bem.

No decorrer de sua fala, Glauco faz considerações que remontam a uma concepção de natureza do homem ligada à premissa de que cometer injustiça seria bom e sofrê-la, ruim. Logo em seguida, ele contrapõe ao homem cuja característica é apresentada acima a figura do homem justo, simples e generoso, que deseja não parecer, e sim, ser bom mas que, por parecer injusto, obterá, por este título, castigos, tortura e morte. Em meio a essa análise sobre as relações entre ser-parecer, Glauco afirma que nunca se saberá se um indivíduo é justo por amar a justiça em si mesma ou por querer desfrutar das honrarias atribuídas a quem realiza tais ações.

Na seqüência do diálogo, Adimanto faz uma observação sobre o modo como os indivíduos recebem as primeiras instruções, as quais por sua vez seriam transmitidas pelos poetas através de suas obras. Sob esse aspecto, a crítica aos poetas incide sobre a alegação de que, em seus discursos, o parecer justo seria mais valorizado do que ser justo[1]. Sob esse aspecto, uma postura crítica é apresentada em relação aos poetas, no sentido de pensar sobre os conteúdos proferidos pelos mesmos, como bem ressalta Maria Villela Petit:
Fica patente que Platão pretende confrontar o saber tradicional forjado pelas palavras dos poetas com o pensamento dialético, que se esforça não em repetir, por ouvir dizer, como as coisas se passaram ou se passam, mas em determinar melhor as coisas de que se fala[2].


Os princípios a que se refere Adimanto estariam relacionados às acepções desenvolvidas pelos particulares e poetas, que segundo ele celebrariam como belas a temperança e a justiça, considerando-as difíceis e penosas, enquanto que, em oposição, a intemperança e a injustiça afiguram-se como agradáveis e de fácil posse, vergonhosas apenas diante da lei. Estas representações terminariam por louvar não a justiça em si mesma, mas sim a reputação que a mesma confere, a fim de que aquele que pareça justo obtenha, devido a esta reputação, as vantagens que Glauco tinha enumerado em seu discurso.

Nessa perspectiva, é possível identificar uma relação existente entre os princípios e valores lançados pelos poetas sobre ser justo ou injusto e a opinião dos indivíduos. Desse modo, tais conteúdos representados sob a forma de modelos ou imagens seriam responsáveis pela assimilação de um saber que se constituiria como a base dos indivíduos, nesse caso, a opinião (doxa).
Tendo como fundamento a busca pela verdade acerca da justiça, o diálogo se desenvolve na medida em que a análise se aprofunda. Em meio a esse contexto, Sócrates se vê diante da necessidade de refutar o discurso proferido por Glauco e Adimanto, o qual representa a opinião comum acerca da injustiça, segundo a qual seria mais vantajoso ser injusto parecendo justo. Com o intuito de identificar a natureza da justiça, Sócrates procede através de uma imagem, cuja representação se dá através da fundação da polis. É importante marcar essa passagem, pois neste instante se evidencia o modo como a investigação segue com o auxílio de uma imagem, na medida em que a fundação da polis remonta à uma representação ampliada da alma.

 Em sua fala, Sócrates argumenta que, diante de necessidades referentes à manutenção da cidade, seria necessária a criação de um exercito, cujos guardiões ocupariam um lugar de destaque na medida em que seriam os responsáveis pelas empreitadas contra outras cidades, assim como da defesa da polis.

Na seqüência do diálogo, dá-se inicio à discussão sobre como os guardiões da cidade devem ser educados, desenvolvendo desse modo certa reflexão sobre as relações que permeiam a formação dos indivíduos. Sócrates inicia sua investigação tendo como referência a música e os discursos existentes que pertencem à mesma, os quais por sua vez conteriam elementos responsáveis pela impressão de valores e princípios nas almas dos indivíduos. Diante disso, Sócrates dá ênfase a essa etapa inicial da formação por considerar necessário que as primeiras fábulas transmitidas às crianças sejam àquelas as quais seriam as mais apropriadas para o ensinamento da virtude. Sob esse aspecto, torna-se evidente uma relação de assimilação das imagens sob a forma de modelos.

Percebe-se que Sócrates não nega o uso das fábulas na instrução dos jovens, pelo contrário, afirma serem estas necessárias no processo de formação. Em meio à sua crítica, Sócrates ressalta que as fábulas devem ser guiadas segundo preceitos morais diferentes dos apresentados por Hesíodo e Homero, tomados como exemplo, os quais teriam como referencial em suas obras uma valorização das aparências em detrimento da verdade.

Ao ser questionado por Adimanto acerca de quais seriam estas fábulas, Sócrates responde de modo a esclarecer o papel que estes desempenham no discurso, pois afirma que “são fundadores da cidade e não poetas, ou seja, a eles compete conhecer os modelos que os poetas devem obedecer em suas histórias e proibir que alguém se afaste deles” [3]. Logo em seguida, Sócrates faz algumas considerações sobre a constituição dos modelos a que seria necessário obedecer nas histórias concernentes aos deuses, além de esclarecer sobre a mentira nos discursos. A respeito deste último, Sócrates dá uma atenção especial ao distinguir aspectos referentes a dois tipos de mentira.

Segundo ele, pode-se denominar verdadeira mentira a ignorância que se encontra na alma da pessoa enganada, pois a mentira nos discursos é imitação do estado da alma, imagem que se produz mais tarde e não mentira absolutamente pura[4]. Sócrates identifica a mentira nos discursos como sendo, alguns casos, necessária e útil, pois nas histórias quando, não sabendo a verdade sobre os eventos do passado, concedemos tanta verossimilhança quanto possível à mentira[5].

Diante das considerações de Sócrates, é possível interpretar que, em prol do objetivo de formar bons guardiões e educar jovens de maneira a prepará-los para a virtude, será necessário utilizar, inseridos nos discursos de maneira condicionada, imagens de condutas morais adequadas a fim de produzirem, nas almas das crianças, efeitos que possam gerar elementos positivos, proveitosos para os interesses da cidade.

As considerações de Sócrates acerca da educação dos guardiões se estendem pelo Livro III sob a análise das formas como os discursos são tomados pelos poetas em suas obras. A fala de Sócrates detém como foco a análise sobre a educação pela música, a qual segundo ele assumiria um papel especial no processo formador, já que “é soberana porque o ritmo e a harmonia gozam, ao mais alto ponto, do poder de penetrar na alma” [6]. Além disso, Sócrates identifica outros agentes que perfazem o processo formador, pois segundo ele, há a necessidade de vigiar também os demais artífices e impedi-los de introduzir o vício, a incontinência e a baixeza na pintura dos seres vivos[7]. Sob esse aspecto, não só os poetas, mas todos aqueles inseridos nos domínios das artes, deveriam ser observados para que em suas obras não haja elementos que afastem os indivíduos para longe das virtudes.

A crítica aos poetas representa uma indagação acerca dos conteúdos proferidos pelos mesmos em suas obras e discursos. A iniciativa de Sócrates visa compreender a justiça como tal em si mesma; desvinculada de qualquer aspecto que remeta a uma necessidade ou obrigação.

Tendo em vista que a formação é perpassada por imagens que representam conteúdos, Sócrates indaga se estas imagens seriam baseadas em conhecimentos que condizem à verdade sobre a justiça. Desse modo, o principal aspecto de sua crítica para com os poetas remete ao fato destes transmitirem, através de suas obras, noções sobre justiça e injustiça que possuem como referencial o “parecer” em detrimento do “ser”. Sob esse aspecto, o “parecer” teria mais valor do que “ser”, ou seja, as aparências seriam mais valorizadas do que a essência.

O estudo acerca do sentido que as imagens possuem no decorrer da República permite a identificação das mesmas num processo de assimilação de conteúdos. Tal processo é perpassado por modelos, como pode ser visto na argumentação crítica aos poetas e na temática da educação dos guardiões. Em certo aspecto, o processo formador do qual as imagens fazem parte também pode ser pensado como instante onde se obtém um certo conhecimento, já que o próprio acesso à virtude e ao vício se encontraria permeado de modelos. Entretanto, essa interpretação se depara com o debate acerca dos aspectos que definem o conhecimento.

Dessa forma, torna-se importante identificar o que Platão caracteriza como conhecimento, já que a imagem da Linha Dividida, contida no Livro VI, aborda sobre o aspecto do processo cognitivo, onde conhecimento e opinião são apresentados em seus respectivos âmbitos, como mesmo ressalta Jaa Torrano:
Sócrates propõe a imagem da linha, em que se imagina o conhecimento como se fosse uma linha: a imagem da linha (eikón) é a imitação (mimema) do conhecimento. A imagem da linha retoma essa distinção prévia à imagem do Sol, entre o sensível e o inteligível[8].


No entanto, tal interpretação direciona a discussão para a necessidade de identificar em quais âmbitos esses conteúdos são relacionáveis. Assim sendo, em meio ao diálogo, Sócrates esclarece sobre aquilo que seria concernente ao verdadeiro filósofo; aquele que deveria ser o governante da cidade.

A distinção entre os amantes de espetáculos e o filósofo remete a outra distinção, a qual por sua vez será fundamental para uma melhor compreensão sobre a Linha Dividida. Trata-se da distinção entre doxa e episteme.

Dessa forma, Sócrates realiza a distinção acerca de quais seriam os filósofos a que ele se refere quando afirma que devem ser a estes confiado o governo. Sendo assim, ele ressalta que o verdadeiro filósofo dirige seu pensamento para a essência das coisas não para o modo como estas aparecem. Segundo ele, a respeito dos verdadeiros filósofos, seu pensamento é conhecimento, pois conhece, enquanto do outro (amantes de espetáculos) é opinião, pois este outro julga pelas aparências[9]. Sócrates desenvolve o princípio de que o verdadeiro filósofo produz conhecimento ao lançar seu pensamento sobre a essência das coisas, enquanto que o amante de espetáculos manteria sua olhar somente no plano das coisas aparentes.

Após estabelecer a distinção entre o verdadeiro filósofo e o amante de espetáculos, a análise sobre o foco para o qual cada um dirige seu olhar emerge do contexto do diálogo.  Assim sendo, Sócrates atenta para qual seria o posicionamento específico da opinião. Quanto a isso ele afirma que, se o conhecimento versa sobre o ser, e a ignorância, necessariamente sobre o não-ser, cumpre procurar, para o que ocupa o meio entre o ser e o não-ser, algum intermediário entre a ciência e a ignorância, suposto que exista algo semelhante. [10] Segundo Sócrates, a opinião ocuparia a posição intermediária entre a ciência e a ignorância[11].

No intuito de desenvolver uma melhor compreensão acerca do sentido presente na imagem da Linha Dividida, torna-se necessário antes entender sua estrutura, ou seja, como se dão as etapas do processo cognitivo descritas na mesma. No entanto, tal entendimento só é possível após uma análise sobre como Sócrates aborda a distinção entre opinião e conhecimento. Diante disso, é importante observar certos aspectos, os quais são passíveis de uma interpretação mais apurada, em específico na relação que opinião e conhecimento estabelecem em seus respectivos âmbitos:
 A distinção não é entre pensamento correto e pensamento errado, como alguns querem. Muito pelo contrário, temos nesta divisão diferentes modos de apreensão, sendo cada um apropriado ao tipo de realidade que é o seu objeto. Não obstante, os modos são hierarquizados e os modos inferiores são de fato, mais propensos ao erro do que os modos superiores[12].

Acerca da caracterização que relaciona opinião e aparência, é necessário lembrar que a análise feita anteriormente a respeito da formação dos guardiões como um processo assimilativo de princípios e valores via modelos e imagens propõe a construção de um saber que seria distinto da ciência. Sendo um saber formado por aquilo que aparece aos indivíduos, a opinião se mostra como algo que pertence à base da própria constituição dos mesmos. No entanto, a opinião é colocada por Platão entre o não saber e o saber alguma coisa, o que da a entender que Platão aplica a ela um certo nível de relação com o conhecimento, mas não um conhecimento sobre a essência/ser.

Desse modo, surge a necessidade de investigar em que circunstancias a opinião se difere do conhecimento, na medida em que tal distinção é apresentada em meio ao processo cognitivo descrito na Linha Dividida. Sobre tal processo:
O conhecimento aparece como tendo duas fases: sensível e inteligível: na primeira, os homens conhecem as coisas através dos sentidos; na segunda, pela razão. Por outro lado, opõe-se, também, aquele que sabe o mesmo que os outros – o senso comum – àquele que sabe, por assim dizer, a essência das coisas – o conhecimento filosófico. O conhecimento pelos sentidos está associado ao corpo e pela razão, à alma. O verdadeiro conhecimento, portanto, é dado pela passagem do conhecimento sensível para o inteligível[13].

 A respeito do processo cognitivo descrito na linha, “trata-se de uma experiência-limite; o bem é o limite, mas não dessa ou daquela idéia, é o limite do aparecer de realidade, da própria idealidade da idéia, mas é a própria compreensão de limite, pois é necessário que haja um fundamento último de todo ente, com o que o funcionamento se adiaria infinitamente para trás” [14].         

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PLATÃO, A República. Trad. Jacó Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2006.

PETIT, M.P.V. Platão e a poesia na República. Departamento de Filosofia da UFMG.
Revista de Filosofia Kritérion, VOL. 44 – Nº 107, 2003. pp.51 – 71.

TORRANO. J.A.A.  A Imagem da Caverna na República de Platão. Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas. Trabalho apresentado na II Semana de Estudos Clássicos da FEUSP no dia 07/05 de 2003, disponível em (www.paideuma.net/torrano.doc).

ERICKSON, G.W. ;  FOSSA, J.A. A Linha Dividida: uma abordagem matemática à filosofia platônica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006. pp. 49 – 67.

MORAES, A.C. A Alegoria da Caverna: Tensões epistemológicas e pretensões didáticas. Trabalho apresentado na V Semana de Estudos Clássicos da FEUSP – Grécia e Roma – Teatro e Educação. 2006, disponível em (www.paideuma.net/textoamaury.rtf).

RIBEIRO, L.F.B. Sobre o Mito da Caverna de Platão. Revista SOFIA – ANO I – Nº 1, 1995. pp. 143 – 162.


[1] PLATÃO. A República. Org. J. GUINSBURG. São Paulo: Perspectiva, 2006; 362a.
[2] PETIT, 2003, p. 54.
[3] Op. Cit. 379a.
[4] Op. Cit. 382b.
[5] Op. Cit. 382d.
[6] Op. Cit. 401e.
[7] Op. Cit. 401b.
[8] TORRANO, 2003, p. 3
[9] Op. Cit. 476d.
[10] Op. Cit. 477b.
[11] Op. Cit. 477b.
[12] ERICKSON e FOSSA, 2006, p. 57
[13] MORAES, 2006, p. 3
[14] RIBEIRO, 1995, p. 156

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