terça-feira, 26 de outubro de 2010

"A ética do poeta forte à sombra da Dialética do Esclarecimento" Luciana Molina Queiroz


A ética do poeta forte à sombra da Dialética do Esclarecimento
Luciana Molina Queiroz

A commiseratio é a humanidade em sua figura imediata, mas ao mesmo tempo “mala et inutilis”, a saber, o contrário do valor viril que, da virtus romana passando pelos Medici até a efficiency da família Ford, foi sempre a única virtude verdadeiramente burguesa (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 85).

A comiseração e a piedade são expostos no Excurso II: Juliette ou Esclarecimento e Moral como ausentes do itinerário moderno. Adorno e Horkheimer argumentam nesse ensaio que Nietzsche e Sade compreenderam a ciência em seus detalhes e consequências e, por isso, prestam-no um serviço maior do que os filósofos morais da burguesia. A razão na atual configuração econômica e social objetiva a compreensão e aplicação, isto é, a maior potência tendo em vista a autoconservação, de modo que ela tanto se liga a fins morais como a fins imorais. Esses são os princípios gerais da forma de racionalidade predominante na contemporaneidade: a racionalidade instrumental.

Ao se questionar sobre os fundamentos éticos e morais do pensamento moderno, Marcuse (1997) indica que há uma forte tendência a um relativismo hedonista. A eudemonia permite que o indivíduo se contente com a felicidade que possui enquanto mônada. Não é uma contradição do hedonismo que uma pessoa sinta prazer a despeito de não haver felicidade geral. Desse modo, o hedonismo suspeita de toda universalidade e firma como meta o prazer imediato individual.

Contudo, a felicidade pressupõe a liberdade, já que aquela advém como a realização plena de todas as possibilidades do indivíduo. Na modernidade do Iluminismo burguês, a não-liberdade está presente tanto nas necessidades como na fruição. A contemporaneidade não proporciona condições para a plenitude humana. Há, antes, a sua reificação: a lógica de troca atua em todos os âmbitos da vida. Por conseguinte, a felicidade, para essa sociedade, também se encontra vinculada ao processo de reificação, de modo que se alinham o hedonismo, o individualismo competitivo e a razão instrumental.

A fixação pelos interesses privados teria, portanto, acabado também com a utopia de uma sociedade melhor. Em troca da perspectiva da felicidade geral, o indivíduo governado pelo individualismo apenas quer o que lhe sacia imediatamente. Em outras palavras, a sociedade capitalista é primordialmente hedonista.

Com a qualificação dos tempos contemporâneos de pós-modernos, torna-se necessário indagar em que medida a crítica dos frankfurtianos ainda possui vitalidade e validade para o contexto atual. Para dar seguimento a essa questão, o próprio sentido de pós-moderno precisa ser problematizado.

O termo “pós-modernismo”, a princípio, era somente uma categoria estética (ANDERSON, 1999). Em 1979, ele é verdadeiramente transportado para a filosofia por ocasião da publicação de A Condição Pós-moderna, de Jean-François Lyotard. A finalidade oficial da obra era a de discutir a atual condição do saber nas sociedades contemporâneas e a legitimidade da ciência. 

Valendo-se da Teoria dos Jogos de Wittgenstein, filósofo ao qual tece elogios por ter rejeitado o positivismo do Círculo de Viena, Lyotard afirma que a cultura pós-moderna se deveria à nova configuração na ciência, na literatura e nas artes, em formação desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Segundo ele, a própria trajetória de pesquisa das ciências teria dado origem ao pós-moderno. As especializações teriam incentivado a disseminação de jogos cada vez mais numerosos e incomensuráveis. Assim, tanto os especialismos científicos como o vínculo social em diferentes grupos seriam autolegitimantes, não sendo passíveis de se avaliaram mutuamente.

Sendo assim, a heterogeneidade dos jogos de linguagem seria a descrição mais exata da cultura. Em sintonia com isso, Lyotard rejeita enfaticamente o que ele chama de grandes narrativas - às quais, supostamente, a ciência recorre para se legitimar.

Lyotard se põe, pois, a evidenciar o caráter repressor da identificação da ciência como único saber. Nesse sentido, ele argumenta que a forma narrativa, associada ao saber tradicional, também constitui conhecimento, e tem as mesmas funções explicativas e prescritivas que o ocidente lega às ciências. Através do mito, é possível explicar a formação do mundo ou indicar os heróis felizes ou infelizes.

Assumir a diferença da legitimidade entre a ciência e as ritualísticas é algo insuportável para Lyotard. Os jogos de linguagem são, todos eles, igualmente legitimados pela pragmática.

A condição pós-moderna foi, na verdade, um escrito de circunstância. Os temas favoritos de Lyotard durante sua experiência acadêmica haviam sido a política e a arte – que, a rigor, ficaram fora da linha de investigação desse primeiro livro sobre a pós-modernidade. Não obstante, através da migração da invenção na arte para a invenção na ciência, foi possível ao pós-moderno ratificar um estado de estetização total. Condizente a isso, Lyotard defende a legitimação pela paralogia, ou seja, a legitimação pelo raciocínio incompleto ou deliberadamente incorreto. Desse modo, com a enfática crítica à metanarrativa, almeja-se que a própria concepção de humanismo seja levada à ruína.

Lyotard nega que a pragmática do saber pós-moderno tenha alguma relação com o objetivo de aumento de desempenho inerente à lógica dos decisores. O saber pós-moderno, para ele, não tem em vista a geração de benefícios práticos. Ele só exerce a função de gerar novas ideias. Ou seja, como ele próprio frisa, o saber pós-moderno está menos próximo dos experts que dos inventores, posto que o ideal do cientista passa a ser o do herói de vanguarda, capaz de empreender a desestabilização dos paradigmas científicos.

Mais tarde, Lyotard (1996) publicaria o livro Moralidades pós-modernas, coletânea de ensaios que comporta temas tão heterogêneos quanto a guerra do Golfo, o artista gráfico, a música, a situação do oriente em face do ocidente, dentre outros. As cidades grandes, em sua hibridez cosmopolita, são para o filósofo o grande símbolo do Pós-Moderno: toda moral ou verdade não é senão uma fábula, uma micronarrativa fundamentada a partir de uma localidade. Por conseguinte, em Moralidades, ele pretende nos chamar atenção para outros relatos que não sejam as metanarrativas ocidentais.

Para Lyotard, as moralidades não só devem manter-se múltiplas. Também é desejável que elas possam se chocar e se interligarem na invenção do novo. Ele argumenta que sua filosofia “aguça nossa sensibilidade para as diferenças e reforça nossa capacidade de suportar o incomensurável.” (LYOTARD, 1986, p. xvii). Desse modo, é festejada a queda de toda e qualquer utopia, pois essa é a maneira de os sujeitos se sintonizarem com o pós-moderno: tornando-se artistas no âmbito da ética. 

Em consonância com a proposta de Lyotard, em A filosofia e o espelho da natureza (1994), o estadunidense Richard Rorty expõe os termos da “virada lingüística”, segundo a qual não haveria adequação da linguagem à realidade. A verdade, então, seria apenas um construto lingüístico sobre o qual conseguimos entrar em acordo. Cito Rorty: “(...) a noção de “representação exacta” é somente um cumprimento automático e vazio que nós prestamos às convicções que conseguem ajudar-nos a fazer o que queremos (...)” (RORTY, 1988, p. 20).

Rorty é um neopragmatista, e, como tal, defende a fusão entre verdade e utilidade. Ou seja, para ele, é necessário alimentar crenças na medida em que essas forem úteis e favoráveis aos nossos atuais desejos em relação ao mundo. 

Rorty propõe a substituição do cânone platônico-kantiano pelo do ironista. O ironista é aquele que se empenha em sua autodescrição, mantendo sempre em suspeita seu vocabulário final. Portanto, o ironista abandona a visão anistórica e assume sua própria finitude e contingência.

Se o pragmatismo clássico poderia se contentar com a funcionalidade de uma crença, o ironista já não o faz. O ironista não quer ser continuador dos vocabulários herdados das autoridades precedentes. Seu comprometimento é somente com sua autonomização, mas essa não advém da consciência; é, antes, uma marca cega ditada por uma lei da natureza. Desse modo, Rorty toma de empréstimo do crítico literário Harold Bloom a expressão “poeta forte” para designar o que julga ser a necessidade de poetização incessante.

Rorty relata sua própria trajetória acadêmica no texto Trotski e as orquídeas selvagens (2000), no qual pontua o papel que cada autoridade intelectual assumiu em sua vida. Ele nos confidencia que se aproximou da filosofia devido à sua ânsia por solidariedade humana. Ao mesmo tempo, revela-nos sua íntima preferência pelas orquídeas. Ou seja, ele opõe duas características de sua identidade: uma que julga prestar contas à comunidade, e outra que parece ser absolutamente irrelevante para o bem-comum, consistindo em uma idiossincrasia privada. Nesse texto, já está esboçada a reflexão ética de Rorty, baseada na suposta incomensurabilidade entre os vocabulários público e privado.

Se o vocabulário privado exaltado por Rorty é o do ironista, qual seria o público? Rorty nos diz de antemão que se tratam de duas questões distintas. Não obstante, se elas não podem ser solucionadas por uma mesma via, podem ser amenizadas pelo uso paralelo de dois vocabulários. Assim ele afirma: Se formos suficientemente irônicos sobre nossos vocabulários finais e suficientemente curiosos sobre o de todas as outras pessoas, não precisaremos ter a preocupação de saber se estamos em contato direto com a realidade moral, se fomos cegados pela ideologia, ou se estamos sendo debilmente relativistas (RORTY, 2007, p. 292).

Não é possível ou necessário falar em algo comum a todos os seres humanos. Rorty afirma que somente a capacidade de sentir dor é compartilhada por todos. Embora ele não deixe claro por que resolveu conceder razão a uma questão tão realista (e que põe em dúvida sua própria prática pragmático-ironista), ele argumenta que o vocabulário liberal é o único capaz de permitir a existência das idiossincrasias íntimas de um indivíduo e, ao mesmo tempo, minorar os momentos de crueldade engendrados pela autonomia do poeta forte. Assim, torna-se evidente o que é a “marca cega” da antifilosofia de Rorty: seu pathos liberal. Rorty afirma o vocabulário liberal como uma espécie de elixir da solidariedade. Através dele, desenvolveríamos nossa sensibilidade a partir de uma identificação mais local com outros seres humanos.

Mas, se é impossível despertar a sensibilidade por algo tão amplo e abstrato como o gênero humano, segue-se disso, na visão de Rorty, que o progresso moral da humanidade consistiria tão somente em aumentar a percepção das pequenas semelhanças que temos com os outros, ampliando dessa forma nossa concepção de um “nós”. Isso esclarece por que Rorty compreende a literatura, a crítica literária e a etnografia como os gêneros privilegiados de sua utopia liberal: elas cumpririam o papel de sensibilizar-nos para as nossas semelhanças com outrem.

Sob o sugestivo título de O declínio da verdade redentora e a ascensão da cultura literária, vemos Rorty expor uma volta à metanarrativa e à utopia fundamentada no antifundacionismo, expressando a contradição de que o próprio Lyotard tentou se desvencilhar. O discurso incentivador do mútiplo das micronarrativas é ele próprio uma metanarrativa.

Como vimos, a utopia pós-moderna lyotardiana almejava a sensibilidade para a diferença. O discurso de Rorty não chega a se opor a ela, uma vez que se delineia como um abrandamento das diferenças a partir da ênfase dada às semelhanças. Por essa via de argumentação, o pós-moderno tanto nos conscientiza sobre o respeito em relação à alteridade quanto potencializa, através da oposição entre “nós” e “outros”, um acirramento das disputas. Ao decretar a falência do estabelecimento de um gênero humano, Rorty nos propõe uma teoria que apresenta, em sua própria configuração, um problema difícil de ser transposto: como impedir que essa ética baseada em aumentar a sensibilidade em relação às pequenas semelhanças não decaia, ao invés disso, em um perigoso narcisismo das pequenas diferenças?

Tanto Lyotard quanto Rorty recorrem à pragmática. Não obstante, ambos subjugam a pragmática ao critério da invenção. Nesse sentido, Lyotard quer conceder espaço às micronarrativas. Rorty sedimenta essa concepção na utopia da ascensão da cultura literária, supondo que a mimese artística possa informar conteúdos morais concretos acerca de sofrimento e solidariedade.
Sendo assim, apesar de realçar a criação e a novidade, o pensamento de Rorty, no que diz respeito à concepção da arte, dá uma inesperada guinada, uma vez que se apresenta como excessivamente conteudístico, ignorando questões relativas à forma da obra de arte e às diferenças existentes entre as vanguardas artísticas e a cultura de massas.

O liberalismo político romântico de Rorty não atenta para alguns fatores intumescidos pelo liberalismo econômico, fazendo-o cair no erro de ver a ética bipartida como uma solução e não como um problema social.

Ao identificar a aspiração da autonomia do sujeito com uma metanarrativa que deve ser recusada, a paralogia (LYOTARD, 2000) que o pós-moderno exalta é a do artista autômato, que coloca um novo lance no jogo e reorganiza as regras de forma arbitrária e completamente dissociada da realidade. Em outras palavras, a seu bel-prazer. A estetização total, dessa forma, funde-se a uma coisificação total. Tudo pode ser manipulado a favor do sujeito desejoso e consumista, ainda que isso se dê em detrimento de seres humanos. A filosofia pós-moderna torna-se legitimadora do que, nas palavras de Perry Anderson (1999, p. 35), é definido como “niilismo hedonista”.

Por conseguinte, a recusa pós-moderna ao ideal de sujeito autônomo negligencia a concepção frankfurtiana de que a razão instrumental exacerba a barbárie.

O método materialista dialético da Teoria Crítica se certifica de que está buscando fincar raízes na historicidade, a fim de compreendê-la e modificá-la, e por isso ela questiona a filosofia sistemática e anistórica. O historicismo de Rorty, ao contrário, apenas nos afirma que uma sociedade é uma disposição histórica idiossincrática. Portanto, na sua concepção, não é viável se comprometer com uma verdade, mas apenas com uma crença momentaneamente útil. Tudo o que podemos fazer é ouvir o maior número de histórias possíveis e nos tornarmos pessoas mais sensíveis ao sofrimento dos outros.

Finalmente o ironismo de Rorty mostra a que veio (e nisso tem em comum com Lyotard): sustenta o descrédito em relação a toda verdade e a consequente assunção da crueldade, pois, ao falarem abstratamente de sensibilidade e solidariedade, tanto Lyotard quanto Rorty negligenciam a crueldade verdadeiramente existente.

Está por ser entendido como a noção de maior sensibilidade se aplica a uma filosofia que, por conta de suas próprias bases teóricas, repercutiu na viabilização das mais complicadas anarquias epistemológicas que exigem reconhecimento equivalente da ficção e de eventos históricos dolorosos, ignorando o apelo de Adorno acerca da necessidade de não se esquecer Auschwitz. Para a sensibilidade pós-moderna, desde que haja uma autolegitimação baseada em determinismo local, é perfeitamente possível nos calarmos diante da dor e da miséria humanas. Se ela provém de um lance inesperado no jogo ou de uma metáfora nova, tanto melhor. Por isso nos diz Rorty: “Na cultura literária que tem emergido durante os últimos duzentos anos, a questão ‘É verdade?’ tem cedido lugar de honra à questão ’O que há de novo?’” (RORTY, 2006, p. 98).

Rorty (2006) em nenhum momento da sua obra deixa claro que crueldade pretende combater. Assim, a crueldade se nos afigura como uma entidade abstrata e anistórica, de modo que, na sua combinação de neopragmatismo e historicismo, está intacta a mais inútil parte do universalismo ético. Sua fetichização do novo redunda em um projeto abstrato e vazio.

Não obstante, a “agenda pós” (WOOD, 1999), que abriga Lyotard, Rorty e tantos outros, mantém-se firme em se autodeclarar tolerante. Adorno provavelmente não discordaria disso, uma vez que, para ele “O burguês é tolerante (...) Seu amor às pessoas tais como são provém do ódio ao homem verdadeiro” (ADORNO, 1993, p. 20).

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